A
imortalidade pelos olhos da cultura
Por
Alessandra Leles Rocha
O mundo contemporâneo não é para
amadores! Análises superficiais sobre isso ou aquilo são sempre um erro. Tudo
depende de observação, de profundidade, de conhecimento, de expertise; mas, sobretudo, de
sensibilidade. Particularmente quando o objeto da discussão é subjetivo,
imaterial, como é o caso da cultura. Aliás, para quem ainda não entendeu o que
ela significa, “A cultura é um processo
contínuo em que se acumulam conhecimentos e também práticas que resultam da
interação social entre indivíduos” (COELHO; MESQUITA, 2013) 1.
Por isso, ela acompanha o curso
do tempo, suas variantes, suas acomodações e inquietudes, suas evoluções e
revoluções, contextualizando tanto as identidades individuais quanto coletivas.
De modo que “[...] o ‘pertencimento’ e a
‘identidade’ não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos por toda a
vida, são bastante negociáveis e revogáveis [...]” (BAUMAN, 2005 apud COELHO;
MESQUITA, 2013).
E para que esse processo seja
possível, ele é “mediado pela língua, que
permite que a cultura seja transmitida e difundida entre as gerações [...]”
(COELHO; MESQUITA, 2013). O que significa que pela língua “a palavra penetra literalmente em todas as
relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica,
nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político,
etc. [...] É, portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais
sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas
despontam, que ainda não tomaram forma [...]” (BAKHTIN, 1997 apud COELHO;
MESQUITA, 2013).
Assim, pelo menos em parte, essas
considerações explicam os motivos pelos quais a Academia Brasileira de Letras
(ABL), enquanto instituição privada independente, permanece consciente do seu
papel como bastião da cultura nacional, no que diz respeito às expressões
artísticas e linguísticas através do tempo. Como bem manifestou Victor Hugo,
escritor francês, “Mude suas opiniões,
mantenha seus princípios. Troque suas folhas, mantenha suas raízes”.
Assim, essa consagrada
instituição criada no fim do século XIX se permite acompanhar os desenhos do
tempo sem impor desnecessários obstáculos. Não é à toa que ela se reserva ao
direito de conservar a dialogia profícua que impulsiona a evolução humana e que
emana bons ares e boas novas, o que particularmente a mantém atenta a ouvir as
demandas do mundo e da sociedade brasileira, mesmo em tempos adversos como
estes de agora.
Apesar de tantas tragédias, tantos
problemas, tanta tristeza e angústia, eis que de lá um sopro de alegria e
vitalidade esperançosa cobriu o país nas últimas semanas. Dois novos acadêmicos
foram eleitos para compor o quadro de membros efetivos, a atriz e escritora
Fernanda Montenegro e o cantor e compositor Gilberto Gil. Dois expoentes da
cultura brasileira, reconhecidos internacionalmente em suas respectivas áreas
de atuação.
Escolhas inquestionáveis,
especialmente, quando outras entidades do cenário cultural brasileiro se
posicionam na contramão da história e tentam desconstruir, de maneira
arbitrária e vulgar, o lastro de conquistas e talentos existentes no país, com
base em justificativas ideologizadas e radicalizadas por uns e outros.
Porque a cultura enquanto espaço
da diversidade, da pluralidade, do coletivo humano, não abre espaço para
preconceitos, discriminações, violências, autoritarismos, como se tem visto por
aí. De modo que a história de vida desses mais novos “imortais” tem muito a dizer sobre esse contexto.
No caso de Fernanda Montenegro, a
condição feminina teve que quebrar seus senões e preconceitos para seguir
adiante. Afinal, ser mulher já não é fácil, nesse país; então, ser artista é
ainda mais difícil. Constantemente questionadas, silenciadas, invisibilizadas,
... elas estão sempre tendo que provar o seu valor, a sua resiliência, a sua
obstinação nos mais diferentes campos da vida.
Já no caso de Gilberto Gil, a
condição de negro, nordestino e ex-exilado político seria o ponto de discussão.
Ora, no contexto de uma sociedade impregnada pelo ranço colonial, é de se
imaginar o peso que esses rótulos tiveram na sua trajetória, não fosse o fato
da sua imensa capacidade de enxergar além dos muros e catapultar o seu talento
mundo afora. Coisas que só uma temporada fora do Brasil, mesmo que a
contragosto, para ajudar a revelar e a luzir.
Portanto, do mesmo modo que não
sei dizer se eles foram predestinados a ser o que são, também, não creio que
eles chegaram até aqui imbuídos de se tornarem possíveis lideranças para nenhum
tipo de resistência. No fim das contas,
por mérito ou não do destino, eles apenas vieram transitando pela vida como
cidadãos, até que, de repente, se viram na condição de figuras emblemáticas e
inesquecíveis, a partir do seu próprio talento e genialidade. Não, nada disso
não foi imposto; mas, acabou de alguma forma marcado, registrado nas páginas da
história cultural brasileira.
Fernanda Montenegro e Gilberto
Gil me parecem, tão somente, discípulos resignados do tempo. Aquele a quem se
eleva o cântico “[...] Tempo rei, é,
tempo rei, ó tempo rei / Transformai as velhas formas do viver / ensinai-me ó,
pai, o que eu ainda não sei / Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei [...]” 2.
Dessa forma seguiram seu curso da
maneira com a qual ele (o tempo) se configurou. Buscando fazer o máximo e o
melhor dentro das suas possibilidades e as do mundo. Sem atropelo. Sem pressa.
Sem aflição. Sem se deixar dominar pelas vaidades. O que significa que ambos
têm a plenitude da consciência de terem ainda muito mais a fazer e a
contribuir. Simples assim.
E se há, ainda, quem considere
isso uma resistência, então, ... Como escreveu William Shakespeare, “Ser ou não ser, eis a questão. Qual é mais
digna ação da alma; sofrer os dardos penetrantes da sorte injusta, ou opor-se a
esta corrente de calamidades e dar-lhes fim com atrevida resistência? [...]”
(Hamlet).
Bem, só eles sabem a resposta. Só
eles podem decidir. Agora, eles estão em um outro patamar. Muito mais imersos e
ungidos pela cultura, que é maior do que as instituições e os poderes. Razão pela qual as palavras de Friedrich
Nietzsche fazem tanto sentido; afinal, só “Depois
que cansei de procurar aprendi a encontrar. Depois que um vento me opôs
resistência, velejo com todos os ventos”.
Assim, Fernanda Montenegro e
Gilberto Gil podem se apropriar dessa imortalidade, ou seja, a certeza de que
as “Linhas paralelas se encontram no
infinito. O infinito não acaba. O infinito é nunca. Ou sempre” (Caio Fernando
Abreu – escritor brasileiro); pois, “O pensador morre, mas seus pensamentos
estão além do alcance da destruição. Os homens são mortais, mas as ideias são
imortais” (Richard Adams – escritor inglês). Vida longa, portanto, a essa
imortalidade que brilha através dos olhos da cultura!
1
COELHO, L.P.; MESQUITA, D.P.C.de. Língua, Cultura e Identidade: Conceitos
intrínsecos e interdependentes. Entreletras,
Araguaína/TO, v.4, n.1, p.24-34, jan. /jul. 2013.
2 Tempo Rei – Gilberto Gil (https://www.letras.mus.br/gilberto-gil/46247/)