quinta-feira, 11 de novembro de 2021

A cada perda humana ficamos mais pobres...


A cada perda humana ficamos mais pobres...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É óbvio que o empobrecimento social preocupa e desconforta! Mas, admitindo ou não, estamos diante de um empobrecimento humano tão brutal, que nos abate. O fluxo constante de perdas humanas, seja porque razões aconteçam, é sempre um prejuízo irrecuperável. São vidas que se silenciam de maneira definitiva, cujo registro de seus legados é só uma ínfima parte do que poderia ainda ser construído e consagrado em favor do coletivo humano.

Tanto tempo assistindo a morte passar a distância, esporádica, eventual, apesar da sua natureza certeira. Então, de repente, no amiúde do cotidiano ela vem se tornando habitual. Chegou de malas e bagagens para se apropriar do espaço e cumprir o seu rito, consumindo a todos pela perplexidade. Ora, ainda que “ninguém fique para semente”, a ideia seria retardar ao máximo a despedida, a partida, a ruptura dos laços e dos sentimentos.

Pouco importa, então, se o dia está ensolarado ou fechado pelas nuvens cinzentas e pesadas de chuva. É na alma que se marcam todas as cicatrizes dessa tristeza, desse desalento, dessa saudade. É na linguagem do corpo que se refletem as expressões do momento; sobretudo, as mais introspectivas. Porque as perdas desconstroem a materialidade da convivência, seja ela próxima ou distante, para transferir tudo a uma imaterialidade de lembranças, de subjetividades pessoais e intransferíveis.

E sempre que eu penso a respeito disso, me lembro da canção do Chico Buarque que diz “[...] Depois de te perder / Te encontro, com certeza / Talvez num tempo da delicadeza / Onde não diremos nada / Nada aconteceu / Apenas seguirei, como encantado / Ao lado teu” 1. Porque apesar da atmosfera melancólica dos acordes, o cântico das palavras parece me trazer o conforto de um reencontro e mitigar, de algum modo, a rudeza com a qual nos invade as circunstâncias.

Além disso, elas não apagam a essência de quem se foi, o que é muito importante. Não gosto dessa prática comum de “transformar morto em santo”. As pessoas marcam, impregnam, participam da nossa história, justamente, pelo conjunto do que elas são. Toda a sua humanidade dicotômica revestida de virtudes e pecados, de talentos e incapacidades, de evoluções e involuções, de belezas e feiuras. Foi dentro desse pacote de diversidades, defeitos, qualidades e excentricidades que nos encantamos ou não, por elas. Então...

Em contrapartida, acredito sim, que em outro plano de existência, sob outras energias e pensamentos, quem sabe não possam se aprimorar e aprender, possam enxergar com mais clareza o que aconteceu por outras perspectivas e assim, se redimirem de suas faltas, suas imperfeições, suas incompreensões, suas dificuldades manifestas enquanto estiveram por aqui. Como se suas almas pudessem lançar fora uma quantidade de pesos mortos, de inutilidades desnecessárias, para poderem voar, para poderem sentir, para poderem, simplesmente, ser. De modo que essa compreensão possa trazer o benefício de apaziguar a dor.

Afinal, daqui e dali as perdas continuam emergindo. O viver diário tem sido marcado pelo adeus em formas e conteúdos diversos, transformando a metamorfose em palavra de ordem nesses tempos tão perversamente sombrios. Estamos sempre na expectativa. Sempre aguardando o impacto devastador a ser noticiado. Sempre respirando fundo para não esmorecer, não enlouquecer, diante dos acontecimentos que não sintetizam necessariamente a despedida de alguém; mas, talvez, de um tempo, de um hábito, de um animal de estimação, de um lugar, ...

Estamos sendo confrontados com o efêmero, o fugaz, o imponderável; então, cada um reage de uma maneira. Alguns silenciam. Outros choram. Gritam. Se desesperam.  Se isolam. Se refugiam no trabalho. Se mudam. ... Mas, é bom que se diga, cada um tem o direito de responder à sua maneira a esse respeito. Porque cada um tece as suas relações humanas e com a vida dentro de um nível de especificidade muito próprio. Embora possam existir perdas compartilhadas coletivamente, o modo como elas serão absorvidas e resignificadas é individual, é único.

Pois é, infelizmente, as perdas fazem parte do caminho. Olhando para o mundo, para conjuntura atual, talvez, venham muitas mais por aí. Então, haveremos de descobrir um modo de conviver com elas. Que seja menos bruto, menos áspero e, no qual, seja possível compatibilizar a razão e a sensibilidade.

Daí me lembrei do poema “Definitivo”, de Carlos Drummond de Andrade, quando ele diz que “[...] A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que não arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável. O sofrimento é opcional...”.

Porque as perdas, em geral, tendem a apontar a insuficiência e os limites que se impõem nas nossas relações humanas e sociais, que se impõem à própria vida. Ficamos desejosos de mais tempo, de mais momentos, de mais experiências, de mais ... mais ... Querendo dizer o que não foi dito. Fazer o que não foi feito. Sonhar o que não foi sonhado. Amar além da conta. Buscar uma felicidade que ficou presa nos preconceitos.

Assim, para atenuar essa má impressão, busquemos dar o máximo e o melhor em tudo o que fizermos de agora em diante. Já sabemos que o relógio não para. Que o tempo urge. Que a mudança pode chegar a qualquer momento. Chega! “[...] Contamos com a imortalidade e esquecemo-nos de contar com a morte” (Milan Kundera – escritor Checo). E isso não resolve nada. Acabar faz parte de existir e, por isso, é tão necessário romper com a inércia, com a inação, enquanto ainda temos vida.

 



1 Todo o sentimento (Chico Buarque) - https://www.letras.mus.br/chico-buarque/45181/