A
cada perda humana ficamos mais pobres...
Por
Alessandra Leles Rocha
É óbvio que o empobrecimento
social preocupa e desconforta! Mas, admitindo ou não, estamos diante de um
empobrecimento humano tão brutal, que nos abate. O fluxo constante de perdas
humanas, seja porque razões aconteçam, é sempre um prejuízo irrecuperável. São
vidas que se silenciam de maneira definitiva, cujo registro de seus legados é
só uma ínfima parte do que poderia ainda ser construído e consagrado em favor
do coletivo humano.
Tanto tempo assistindo a morte
passar a distância, esporádica, eventual, apesar da sua natureza certeira. Então,
de repente, no amiúde do cotidiano ela vem se tornando habitual. Chegou de
malas e bagagens para se apropriar do espaço e cumprir o seu rito, consumindo a
todos pela perplexidade. Ora, ainda que “ninguém
fique para semente”, a ideia seria retardar ao máximo a despedida, a
partida, a ruptura dos laços e dos sentimentos.
Pouco importa, então, se o dia
está ensolarado ou fechado pelas nuvens cinzentas e pesadas de chuva. É na alma
que se marcam todas as cicatrizes dessa tristeza, desse desalento, dessa
saudade. É na linguagem do corpo que se refletem as expressões do momento;
sobretudo, as mais introspectivas. Porque as perdas desconstroem a
materialidade da convivência, seja ela próxima ou distante, para transferir
tudo a uma imaterialidade de lembranças, de subjetividades pessoais e intransferíveis.
E sempre que eu penso a respeito
disso, me lembro da canção do Chico Buarque que diz “[...] Depois de te perder / Te encontro, com certeza / Talvez num
tempo da delicadeza / Onde não diremos nada / Nada aconteceu / Apenas seguirei,
como encantado / Ao lado teu” 1. Porque
apesar da atmosfera melancólica dos acordes, o cântico das palavras parece me
trazer o conforto de um reencontro e mitigar, de algum modo, a rudeza com a
qual nos invade as circunstâncias.
Além disso, elas não apagam a essência
de quem se foi, o que é muito importante. Não gosto dessa prática comum de “transformar morto em santo”. As pessoas
marcam, impregnam, participam da nossa história, justamente, pelo conjunto do
que elas são. Toda a sua humanidade dicotômica revestida de virtudes e pecados,
de talentos e incapacidades, de evoluções e involuções, de belezas e feiuras. Foi
dentro desse pacote de diversidades, defeitos, qualidades e excentricidades que
nos encantamos ou não, por elas. Então...
Em contrapartida, acredito sim,
que em outro plano de existência, sob outras energias e pensamentos, quem sabe
não possam se aprimorar e aprender, possam enxergar com mais clareza o que
aconteceu por outras perspectivas e assim, se redimirem de suas faltas, suas
imperfeições, suas incompreensões, suas dificuldades manifestas enquanto estiveram
por aqui. Como se suas almas pudessem lançar fora uma quantidade de pesos
mortos, de inutilidades desnecessárias, para poderem voar, para poderem sentir,
para poderem, simplesmente, ser. De modo que essa compreensão possa trazer o benefício
de apaziguar a dor.
Afinal, daqui e dali as perdas continuam
emergindo. O viver diário tem sido marcado pelo adeus em formas e conteúdos diversos,
transformando a metamorfose em palavra de ordem nesses tempos tão perversamente
sombrios. Estamos sempre na expectativa. Sempre aguardando o impacto devastador
a ser noticiado. Sempre respirando fundo para não esmorecer, não enlouquecer,
diante dos acontecimentos que não sintetizam necessariamente a despedida de alguém;
mas, talvez, de um tempo, de um hábito, de um animal de estimação, de um lugar,
...
Estamos sendo confrontados com o efêmero,
o fugaz, o imponderável; então, cada um reage de uma maneira. Alguns silenciam.
Outros choram. Gritam. Se desesperam. Se
isolam. Se refugiam no trabalho. Se mudam. ... Mas, é bom que se diga, cada um
tem o direito de responder à sua maneira a esse respeito. Porque cada um tece as
suas relações humanas e com a vida dentro de um nível de especificidade muito próprio.
Embora possam existir perdas compartilhadas coletivamente, o modo como elas
serão absorvidas e resignificadas é individual, é único.
Pois é, infelizmente, as perdas
fazem parte do caminho. Olhando para o mundo, para conjuntura atual, talvez,
venham muitas mais por aí. Então, haveremos de descobrir um modo de conviver
com elas. Que seja menos bruto, menos áspero e, no qual, seja possível compatibilizar
a razão e a sensibilidade.
Daí me lembrei do poema “Definitivo”, de Carlos Drummond de
Andrade, quando ele diz que “[...] A cada
dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que
não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que não arrisca, e
que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional...”.
Porque as perdas, em geral,
tendem a apontar a insuficiência e os limites que se impõem nas nossas relações
humanas e sociais, que se impõem à própria vida. Ficamos desejosos de mais
tempo, de mais momentos, de mais experiências, de mais ... mais ... Querendo
dizer o que não foi dito. Fazer o que não foi feito. Sonhar o que não foi
sonhado. Amar além da conta. Buscar uma felicidade que ficou presa nos preconceitos.
Assim, para atenuar essa má
impressão, busquemos dar o máximo e o melhor em tudo o que fizermos de agora em
diante. Já sabemos que o relógio não para. Que o tempo urge. Que a mudança pode
chegar a qualquer momento. Chega! “[...]
Contamos com a imortalidade e esquecemo-nos de contar com a morte” (Milan
Kundera – escritor Checo). E isso não resolve nada. Acabar faz parte de
existir e, por isso, é tão necessário romper com a inércia, com a inação, enquanto
ainda temos vida.