Democracia...
Por
Alessandra Leles Rocha
Então, de repente, o mundo se deu
conta de que a Democracia está em declínio. Que bom! Porque já passou da hora
de refletir a esse respeito e desconstruir todas aquelas concepções
idealizadas. Sim, porque ainda que ela represente um regime de governo, no qual
a origem do poder emana do povo, na prática do cotidiano as relações são bem
mais complexas e desafiadoras.
Primeiro, porque o direito à
participação política, no que diz respeito ao exercício do voto, é bastante
relativa. A Democracia permite eleições diretas; mas, também, indiretas. Segundo,
porque a existência de concepções distintas – Democracia Liberal, Socialdemocracia
e Democracia Neoliberal – torna o princípio da Isegoria, estabelecido na democracia grega, em que todos têm
direito à voz e ao voto para que sejam tomadas as decisões, não é efetivamente
exercido em todas as suas expressões contemporâneas. O que significa que essa
ideia de “poder do povo” só existe
até a página dois da história.
Afinal, o tempo vem descortinando
as verdades subjacentes aos fatos. De modo que todo aquele ideário sobre liberdade
individual, de opinião, de expressão, de imprensa, sobre igualdade de direitos
e de oportunidades, sobre acesso à informação e sobre alternância do poder, é
só um ideário. No dia a dia ele vem sendo flexibilizado, moldado e manipulado,
segundo os interesses daqueles que realmente têm e estão no poder. É nesse
instante que as pessoas tendem a começar a perceber o seu papel nesse movimento
de suposta “fragilização” e “declínio” democrático, pela perspectiva
das suas escolhas.
É triste admitir; mas, a
contemporaneidade tem esse papel bruto de revelar de maneira nua e crua, o que
é profundamente nocivo para a displicência social. Vestida pela couraça de um
individualismo exacerbado, que perdeu a capacidade de se compreender integrante
e integrada a um senso coletivo, a humanidade passou a se sentir senhora da sua
liberdade, dos seus desejos, dos seus interesses, sem quaisquer restrições. Ficou
pelo caminho o equilíbrio que se tentava manter entre liberdade e segurança,
por exemplo. E justamente nesse ponto, a humanidade acabou vulnerabilizando os
regimes democráticos.
Ora, na medida em que cada um se
considera no direito de clamar pela expressão da sua própria liberdade, isso
significa aspectos muito particularizados, de demandas muito próprias, então,
ao contrário de ser um grito uníssono, ele se torna a expressão do dissenso,
que não alcança um denominador comum capaz de fortalecer uma determinada
reivindicação. E as Democracias precisam reconhecer as demandas advindas da
vontade popular coletiva, porque elas dependem dos consensos para se moverem
adiante. Sem isso, elas se tornam vetores de mesma direção e sentidos opostos
que, inevitavelmente, irão se anular, mantendo o estado de inação.
Esse panorama conjuntural tende,
então, a ampliar e fortalecer o poder que se encontra nas mãos dos representantes
eleitos pelo povo. Porque ao mesmo tempo em que eles enxergam nesse dissenso a
impossibilidade de compreender as demandas populares manifestas nesse
verdadeiro “balaio de gatos”, eles se
veem obrigados a serem “freios de
arrumação” para suas respectivas sociedades. Eles passam, então, a atuar de
certo modo à revelia do princípio da Isegoria.
Assim, quanto mais o direito à voz se torna desproporcional ao voto, para
que sejam tomadas as decisões, mais a Democracia é esfacelada pelas tensões que
emergem desse processo.
Como o povo não consegue
expressar satisfatoriamente os seus anseios, as suas necessidades, as suas prioridades,
desencadeando um imenso ruído não decodificável, as nações passam a transitar
pelo viés dos interesses determinados pelos representantes eleitos democraticamente.
Daí o melhor recorte que se extrai para
explicar esse processo esteja na desigualdade social. As Democracias em tal “declínio” são o espelho desse processo
de ruptura com a igualdade, a equidade, o senso holístico. Não é à toa que, quando
a situação aperta, o nível de instabilidade se acirra, elas lançam mão de paliativos,
de medidas emergenciais, e até placebos, para frear a insatisfação popular, sem
permitir o restauro dos verdadeiros alicerces democráticos, ou seja, o
princípio da Isonomia e o princípio
da Isegoria.
Então, olhando com total atenção
para a Democracia brasileira se torna imperioso tecer algumas considerações
importantes. Não sei se, de fato, possa ser atribuído à nossa Democracia a ideia
de declínio. Na verdade, para uma eventual decaída seria necessário que ela
tivesse, em algum momento, sido efetivamente firme e pujante; o que não foi o
caso. Nosso histórico colonial, que ainda exala seu ranço em pleno século XXI,
faz crer que nunca houve uma apropriação literal do senso democrático pelos
brasileiros.
Aqui e ali no curso da história,
o povo sempre esteve sob jugo de certos grupos dominantes, os quais faziam
questão de se auto atribuir o papel de representantes da maioria. E mesmo
quando o direito ao voto foi determinado juridicamente, demorou muito tempo, só
em 1988, para que todos os cidadãos tivessem o direito de fazê-lo. O que,
infelizmente, permitiu que muitas práticas de coação e/ou cerceamento das
liberdades, inclusive de escolha política, permanecessem. Considerando que
velhas práxis são bastante resistentes às mudanças, isso ajuda a explicar a
baixa adesão ao protagonismo democrático no país.
Vejam que, de um pleito para
outro, uma expressiva parcela da população nem se recorda quem foram suas
escolhas representativas. Portanto, não se inteiraram do trabalho de quem
escolheram, das suas realizações políticas em favor do povo, se gastaram muito
ou pouco, bem ou mal, o dinheiro público, enfim... No fundo, nossa Democracia é,
como dizem, “para inglês ver”. Poucos
direitos. Muitos deveres e obrigações; mas, que acabam pelas vias do “jeitinho” desrespeitadas e não
cumpridas. Com um engajamento político de conveniência, por interesses pouco
ortodoxos.
Portanto, o que trouxe o
relatório “The Global State of Democracy
2021” (Estado da Democracia global), publicado pela Organização International
IDEA, com sede em Estocolmo, sobre o declínio das democracias, me faz entender
que o Brasil apenas encontrou eco no cenário internacional para expressar a sua
própria essência, para surfar na esteira de outras democracias ameaçadas, como
se esse “esfacelamento” fosse algo
recente. Acontece que não.
Quando se compreende a
Democracia, as palavras do sociólogo polonês Zygmunt Bauman fazem total
sentido, ou seja, “Há dois valores essenciais
que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória, recompensadora
e relativamente feliz. Um é segurança e o outro é a liberdade. Você não
consegue ser feliz, você não consegue ter uma vida digna na ausência de um
deles, certo? Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é
um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar
com isso. Então você precisa dos dois”.
A questão é que nós, brasileiros,
nunca a compreendemos. Por isso, o que chamamos de Democracia não passa de uma
construção social de “meia pataca”, uma
distorção, uma tendenciosidade vulgar, um enviesamento qualquer. Nos consideramos
demasiadamente libertários, porque nossa identidade nacional foi assim constituída.
De modo que qualquer eventual preocupação com a segurança nunca pareceu
necessária porque sempre havia alguém para pensar, para decidir, para resolver,
para fazer e acontecer. Bom ou ruim, o cotidiano tinha, então, que ser assimilado
goela abaixo. Ninguém jamais ansiou pelo protagonismo de tomar a dianteira da
situação. Talvez, pelo fato de nos sentirmos incapazes, inábeis, desajeitados,
... ou, simplesmente, preguiçosos, apáticos crônicos.
Quem sabe, então, esse relatório possa
nos movimentar para fora dessa pseudo zona de conforto, hein? Porque “Democracia com fome, sem educação e saúde
para a maioria, é uma concha vazia” (Nelson Mandela – Nobel da Paz). Sem essa
consciência, O Brasil permanecerá reafirmando a ideia de que “Democracia quer simplesmente dizer o
desencanto do povo, pelo povo, para o povo” (Oscar Wilde – poeta e dramaturgo irlandês).
Afinal de contas, “Se a liberdade e a
democracia, não são termos equivalentes, mas são complementares: Sem liberdade,
a democracia é despotismo, a democracia sem a liberdade é uma ilusão” (Octavio
Paz – poeta, ensaísta, tradutor e diplomata mexicano).