terça-feira, 23 de novembro de 2021

Democracia...


Democracia...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Então, de repente, o mundo se deu conta de que a Democracia está em declínio. Que bom! Porque já passou da hora de refletir a esse respeito e desconstruir todas aquelas concepções idealizadas. Sim, porque ainda que ela represente um regime de governo, no qual a origem do poder emana do povo, na prática do cotidiano as relações são bem mais complexas e desafiadoras.

Primeiro, porque o direito à participação política, no que diz respeito ao exercício do voto, é bastante relativa. A Democracia permite eleições diretas; mas, também, indiretas. Segundo, porque a existência de concepções distintas – Democracia Liberal, Socialdemocracia e Democracia Neoliberal – torna o princípio da Isegoria, estabelecido na democracia grega, em que todos têm direito à voz e ao voto para que sejam tomadas as decisões, não é efetivamente exercido em todas as suas expressões contemporâneas. O que significa que essa ideia de “poder do povo” só existe até a página dois da história.   

Afinal, o tempo vem descortinando as verdades subjacentes aos fatos. De modo que todo aquele ideário sobre liberdade individual, de opinião, de expressão, de imprensa, sobre igualdade de direitos e de oportunidades, sobre acesso à informação e sobre alternância do poder, é só um ideário. No dia a dia ele vem sendo flexibilizado, moldado e manipulado, segundo os interesses daqueles que realmente têm e estão no poder. É nesse instante que as pessoas tendem a começar a perceber o seu papel nesse movimento de suposta “fragilização” e “declínio” democrático, pela perspectiva das suas escolhas.

É triste admitir; mas, a contemporaneidade tem esse papel bruto de revelar de maneira nua e crua, o que é profundamente nocivo para a displicência social. Vestida pela couraça de um individualismo exacerbado, que perdeu a capacidade de se compreender integrante e integrada a um senso coletivo, a humanidade passou a se sentir senhora da sua liberdade, dos seus desejos, dos seus interesses, sem quaisquer restrições. Ficou pelo caminho o equilíbrio que se tentava manter entre liberdade e segurança, por exemplo. E justamente nesse ponto, a humanidade acabou vulnerabilizando os regimes democráticos.

Ora, na medida em que cada um se considera no direito de clamar pela expressão da sua própria liberdade, isso significa aspectos muito particularizados, de demandas muito próprias, então, ao contrário de ser um grito uníssono, ele se torna a expressão do dissenso, que não alcança um denominador comum capaz de fortalecer uma determinada reivindicação. E as Democracias precisam reconhecer as demandas advindas da vontade popular coletiva, porque elas dependem dos consensos para se moverem adiante. Sem isso, elas se tornam vetores de mesma direção e sentidos opostos que, inevitavelmente, irão se anular, mantendo o estado de inação.

Esse panorama conjuntural tende, então, a ampliar e fortalecer o poder que se encontra nas mãos dos representantes eleitos pelo povo. Porque ao mesmo tempo em que eles enxergam nesse dissenso a impossibilidade de compreender as demandas populares manifestas nesse verdadeiro “balaio de gatos”, eles se veem obrigados a serem “freios de arrumação” para suas respectivas sociedades. Eles passam, então, a atuar de certo modo à revelia do princípio da Isegoria. Assim, quanto mais o direito à voz se torna desproporcional ao voto, para que sejam tomadas as decisões, mais a Democracia é esfacelada pelas tensões que emergem desse processo.

Como o povo não consegue expressar satisfatoriamente os seus anseios, as suas necessidades, as suas prioridades, desencadeando um imenso ruído não decodificável, as nações passam a transitar pelo viés dos interesses determinados pelos representantes eleitos democraticamente.  Daí o melhor recorte que se extrai para explicar esse processo esteja na desigualdade social. As Democracias em tal “declínio” são o espelho desse processo de ruptura com a igualdade, a equidade, o senso holístico. Não é à toa que, quando a situação aperta, o nível de instabilidade se acirra, elas lançam mão de paliativos, de medidas emergenciais, e até placebos, para frear a insatisfação popular, sem permitir o restauro dos verdadeiros alicerces democráticos, ou seja, o princípio da Isonomia e o princípio da Isegoria.   

Então, olhando com total atenção para a Democracia brasileira se torna imperioso tecer algumas considerações importantes. Não sei se, de fato, possa ser atribuído à nossa Democracia a ideia de declínio. Na verdade, para uma eventual decaída seria necessário que ela tivesse, em algum momento, sido efetivamente firme e pujante; o que não foi o caso. Nosso histórico colonial, que ainda exala seu ranço em pleno século XXI, faz crer que nunca houve uma apropriação literal do senso democrático pelos brasileiros.

Aqui e ali no curso da história, o povo sempre esteve sob jugo de certos grupos dominantes, os quais faziam questão de se auto atribuir o papel de representantes da maioria. E mesmo quando o direito ao voto foi determinado juridicamente, demorou muito tempo, só em 1988, para que todos os cidadãos tivessem o direito de fazê-lo. O que, infelizmente, permitiu que muitas práticas de coação e/ou cerceamento das liberdades, inclusive de escolha política, permanecessem. Considerando que velhas práxis são bastante resistentes às mudanças, isso ajuda a explicar a baixa adesão ao protagonismo democrático no país.

Vejam que, de um pleito para outro, uma expressiva parcela da população nem se recorda quem foram suas escolhas representativas. Portanto, não se inteiraram do trabalho de quem escolheram, das suas realizações políticas em favor do povo, se gastaram muito ou pouco, bem ou mal, o dinheiro público, enfim... No fundo, nossa Democracia é, como dizem, “para inglês ver”. Poucos direitos. Muitos deveres e obrigações; mas, que acabam pelas vias do “jeitinho” desrespeitadas e não cumpridas. Com um engajamento político de conveniência, por interesses pouco ortodoxos.

Portanto, o que trouxe o relatório “The Global State of Democracy 2021” (Estado da Democracia global), publicado pela Organização International IDEA, com sede em Estocolmo, sobre o declínio das democracias, me faz entender que o Brasil apenas encontrou eco no cenário internacional para expressar a sua própria essência, para surfar na esteira de outras democracias ameaçadas, como se esse “esfacelamento” fosse algo recente. Acontece que não.

Quando se compreende a Democracia, as palavras do sociólogo polonês Zygmunt Bauman fazem total sentido, ou seja, “Há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz. Um é segurança e o outro é a liberdade. Você não consegue ser feliz, você não consegue ter uma vida digna na ausência de um deles, certo? Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então você precisa dos dois”.

A questão é que nós, brasileiros, nunca a compreendemos. Por isso, o que chamamos de Democracia não passa de uma construção social de “meia pataca”, uma distorção, uma tendenciosidade vulgar, um enviesamento qualquer. Nos consideramos demasiadamente libertários, porque nossa identidade nacional foi assim constituída. De modo que qualquer eventual preocupação com a segurança nunca pareceu necessária porque sempre havia alguém para pensar, para decidir, para resolver, para fazer e acontecer. Bom ou ruim, o cotidiano tinha, então, que ser assimilado goela abaixo. Ninguém jamais ansiou pelo protagonismo de tomar a dianteira da situação. Talvez, pelo fato de nos sentirmos incapazes, inábeis, desajeitados, ... ou, simplesmente, preguiçosos, apáticos crônicos.

Quem sabe, então, esse relatório possa nos movimentar para fora dessa pseudo zona de conforto, hein? Porque “Democracia com fome, sem educação e saúde para a maioria, é uma concha vazia” (Nelson Mandela – Nobel da Paz). Sem essa consciência, O Brasil permanecerá reafirmando a ideia de que “Democracia quer simplesmente dizer o desencanto do povo, pelo povo, para o povo” (Oscar Wilde – poeta e dramaturgo irlandês). Afinal de contas, “Se a liberdade e a democracia, não são termos equivalentes, mas são complementares: Sem liberdade, a democracia é despotismo, a democracia sem a liberdade é uma ilusão” (Octavio Paz – poeta, ensaísta, tradutor e diplomata mexicano).