O
Enem e o “balão de ensaio”
Por
Alessandra Leles Rocha
Passado o primeiro dia de provas
do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), a reflexão e a análise começam a se
mostrar reveladoras além do óbvio. De antemão já se sabia que o número de inscritos
para o exame impresso de 2020 para 2021 reduziu em 31%, ou seja, de 5.783.357
para 3.903.664. Que o percentual de estudantes pretos, pardos, amarelos ou indígenas
caiu de 63,2% para 56,4%. E quanto ao primeiro dia de provas impressas, o nível
de abstenção foi de 26%, segundo informações do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
No entanto, considerando o
recorde de abstenções do 1º dia, em 2020, quando 51,5% dos alunos não
compareceu para realizar a prova impressa, era de se esperar que esse ano seria
diferente, que as abstenções seriam praticamente mínimas, por conta da
vacinação contra a COVID-19 e uma tendência de arrefecimento da Pandemia. Só que
não.
Dessa vez, a crise institucional
que se estabeleceu no Inep dias antes do início do Enem, com o pedido de
demissão de 35 funcionários, após dois coordenadores-gerais também terem
solicitado desligamento, e a confecção de um documento reunindo denúncias de perseguição
aos servidores, assédio moral, uso político-ideológico da instituição pelo MEC
e falta de comando técnico, foi a gota d’água da desestabilização.
Mas, é importante salientar às
conjunturas, o acréscimo devastador promovido pelas falas e narrativas,
enviesadas e vazias, que partiram desde o Presidente da República ao Ministro
da Educação e o Presidente do Inep sobre tais acontecimentos.
Receio e apreensão configuraram,
então, o sentimento que se abateu sobre alunos, professores e funcionários do
Inep, especialmente, porque, “segundo o dossiê,
‘depoimentos indicam pressão política oriunda da presidência do órgão para
retirada de questões, sem motivo idôneo, como relatado na imprensa1” 2.
Afinal de contas, se houve quebra
de sigilo das provas e censura a questões por motivos injustificáveis, é
inevitável pensar na hipótese de eventual cerceamento da liberdade de expressão
dos alunos na prova de redação, que tem o maior peso nas notas. Mas, também, no
que estaria por vir desse processo, no próprio campo de ensino e preparação dos
alunos dentro do ciclo de educação nacional.
Então, para os que decidiram comparecer
aos locais de prova, o frisson em torno do controle “ideológico” se mostrou um verdadeiro “balão de ensaio”, cumprindo o seu papel de afugentar, de
amedrontar, alunos já tão desgastados e consumidos pelos impactos da pandemia
no seu processo de aprendizagem.
Inclusive, o tema da redação ter
sido “Invisibilidade e registro civil:
garantia de acesso à cidadania no Brasil” surpreendeu pela possibilidade
crítico-reflexiva. Porém, em relação a esse item da prova, como “precaução e caldo de galinha não faz mal a
ninguém”, há de se esperar sob que viés serão corrigidos os textos.
Ora, ora. Um pouco de observação às
ações do Ministério da Educação, nos últimos três anos, para se constatar as
intenções que transitam ao redor do Ensino Superior, no Brasil. Daqui e dali
surgem iniciativas para desmantelar, desconstruir, desconfigurar as conquistas
e os avanços nesse setor, começando por cortes de verbas cada vez mais
substanciosos, que impedem as garantias de manutenção do tripé “Ensino, Pesquisa e Extensão”.
Mas, não para por aí. Há um visível
propósito em resgatar o elitismo das universidades brasileiras, obstaculizando
o ingresso das camadas menos favorecidas e predominantemente não brancas. Aliás,
“Perto de completar uma década, a Lei de
Cotas nas instituições de ensino federal entra em um momento decisivo. ‘Terá
que ser revisada em 2022’ – um processo previsto em seu artigo sétimo que tem
mobilizado defensores das políticas afirmativas. As inquietações são muitas. Ao
mesmo tempo em que há o temor de que a polarização política ponha em risco uma
medida com efeitos sociais claros, há a expectativa de que esta possa ser uma
oportunidade para corrigir falhas” 3.
E no que diz respeito ao Enem,
essa questão é de suma importância; pois, é através dele que negros, pardos, amarelos
ou indígenas podem ultrapassar os portais das universidades brasileiras. E como
são eles a grande maioria dos inscritos... Oriundos de escolas públicas e pertencentes
as parcelas menos privilegiadas da população. Desse modo, há uma fragilidade na
suficiência e eficiência da sua formação educacional para lhes possibilitar
igualdade de disputa. Muitos trabalham, o que reduz o seu tempo e disposição de
estudo. Muitos não têm acessibilidade digital e letramento digital capaz de
suprir as suas demandas educacionais. ...
Cada obstáculo imposto no seu
caminho, então, o afasta cada vez mais das possibilidades de ingresso ao Ensino
Superior. O que mostraram as pesquisas realizadas durante a Pandemia, por
exemplo. Foram esses alunos os que mais sofreram os impactos da suspensão das
aulas presenciais, em todos os níveis de ensino, por um conjunto de desassistências
sociais diversas. O que significa que as suas oportunidades de ruptura com o seu
status social, através da ascensão escolar, são quase nulas dada a falta de
políticas públicas efetivamente compromissadas com esse direito fundamental.
Para eles quaisquer mínimas desestabilizações
em um momento tão importante de suas vidas, como é o Enem, significa um tsunami
sobre seus sonhos, suas esperanças, suas expectativas. Suas histórias de perdas
e decepções sociais são tão dilacerantes que já trivializaram o seu ímpeto de
postergação ou desistência, a fim de mitigar as frustrações e os desalentos.
Por isso, o tal “balão de ensaio” funciona, porque eles
têm uma projeção das suas habilidades, das suas competências, dos seus conhecimentos
para fazer a prova, e sabem, quase sempre, que ela não é muito grande. Que eles
vão ter que driblar muitas variáveis para reduzir a distância que os separa dos
“bem preparados”; sobretudo, na
redação. E de repente, estão sendo subliminarmente confrontados a pensar
obedientemente, a silenciar a sua criatividade, a sua liberdade de expressão. Mais
uma pedra a pesar sobre os ombros e cansar demasiadamente a esperança.
É tudo muito triste! O Enem foi
criado para encurtar distâncias sociais, para promover mais igualdade de acesso
às universidades, para oportunizar novos paradigmas para o país, e de
repente... sob o silêncio ensurdecedor de milhares de pessoas, anônimas e
influentes, ele deixa de ser um projeto de Estado para se tornar um projeto de
governo. Sem se importar com o retrocesso que esse movimento representa. Sem se
importar com as demandas do mercado de trabalho. Sem se importar com o
desenvolvimento científico e tecnológico. Sem se importar com absolutamente
nada.
A desconstrução do Enem para dar
lugar aos caprichos, aos devaneios e as ignorâncias político-ideológicas em
curso, não pune só a sociedade, pune o país como um todo. Pune o desenvolvimento.
Pune o progresso. Pune a ciência. Pune o comércio. Pune a arrecadação de divisas.
Pune... Por anos, por décadas, por séculos.
De modo que é impossível não pensar nas palavras de Paulo Freire, quando disse que “Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. A continuar como estamos, então, ...