segunda-feira, 22 de novembro de 2021

O Enem e o “balão de ensaio”


O Enem e o “balão de ensaio”

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Passado o primeiro dia de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), a reflexão e a análise começam a se mostrar reveladoras além do óbvio. De antemão já se sabia que o número de inscritos para o exame impresso de 2020 para 2021 reduziu em 31%, ou seja, de 5.783.357 para 3.903.664. Que o percentual de estudantes pretos, pardos, amarelos ou indígenas caiu de 63,2% para 56,4%. E quanto ao primeiro dia de provas impressas, o nível de abstenção foi de 26%, segundo informações do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

No entanto, considerando o recorde de abstenções do 1º dia, em 2020, quando 51,5% dos alunos não compareceu para realizar a prova impressa, era de se esperar que esse ano seria diferente, que as abstenções seriam praticamente mínimas, por conta da vacinação contra a COVID-19 e uma tendência de arrefecimento da Pandemia. Só que não.

Dessa vez, a crise institucional que se estabeleceu no Inep dias antes do início do Enem, com o pedido de demissão de 35 funcionários, após dois coordenadores-gerais também terem solicitado desligamento, e a confecção de um documento reunindo denúncias de perseguição aos servidores, assédio moral, uso político-ideológico da instituição pelo MEC e falta de comando técnico, foi a gota d’água da desestabilização.

Mas, é importante salientar às conjunturas, o acréscimo devastador promovido pelas falas e narrativas, enviesadas e vazias, que partiram desde o Presidente da República ao Ministro da Educação e o Presidente do Inep sobre tais acontecimentos.  

Receio e apreensão configuraram, então, o sentimento que se abateu sobre alunos, professores e funcionários do Inep, especialmente, porque, “segundo o dossiê, ‘depoimentos indicam pressão política oriunda da presidência do órgão para retirada de questões, sem motivo idôneo, como relatado na imprensa12.

Afinal de contas, se houve quebra de sigilo das provas e censura a questões por motivos injustificáveis, é inevitável pensar na hipótese de eventual cerceamento da liberdade de expressão dos alunos na prova de redação, que tem o maior peso nas notas. Mas, também, no que estaria por vir desse processo, no próprio campo de ensino e preparação dos alunos dentro do ciclo de educação nacional.

Então, para os que decidiram comparecer aos locais de prova, o frisson em torno do controle “ideológico” se mostrou um verdadeiro “balão de ensaio”, cumprindo o seu papel de afugentar, de amedrontar, alunos já tão desgastados e consumidos pelos impactos da pandemia no seu processo de aprendizagem.

Inclusive, o tema da redação ter sido “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil” surpreendeu pela possibilidade crítico-reflexiva. Porém, em relação a esse item da prova, como “precaução e caldo de galinha não faz mal a ninguém”, há de se esperar sob que viés serão corrigidos os textos.  

Ora, ora. Um pouco de observação às ações do Ministério da Educação, nos últimos três anos, para se constatar as intenções que transitam ao redor do Ensino Superior, no Brasil. Daqui e dali surgem iniciativas para desmantelar, desconstruir, desconfigurar as conquistas e os avanços nesse setor, começando por cortes de verbas cada vez mais substanciosos, que impedem as garantias de manutenção do tripé “Ensino, Pesquisa e Extensão”.

Mas, não para por aí. Há um visível propósito em resgatar o elitismo das universidades brasileiras, obstaculizando o ingresso das camadas menos favorecidas e predominantemente não brancas. Aliás, “Perto de completar uma década, a Lei de Cotas nas instituições de ensino federal entra em um momento decisivo. ‘Terá que ser revisada em 2022’ – um processo previsto em seu artigo sétimo que tem mobilizado defensores das políticas afirmativas. As inquietações são muitas. Ao mesmo tempo em que há o temor de que a polarização política ponha em risco uma medida com efeitos sociais claros, há a expectativa de que esta possa ser uma oportunidade para corrigir falhas” 3.

E no que diz respeito ao Enem, essa questão é de suma importância; pois, é através dele que negros, pardos, amarelos ou indígenas podem ultrapassar os portais das universidades brasileiras. E como são eles a grande maioria dos inscritos... Oriundos de escolas públicas e pertencentes as parcelas menos privilegiadas da população. Desse modo, há uma fragilidade na suficiência e eficiência da sua formação educacional para lhes possibilitar igualdade de disputa. Muitos trabalham, o que reduz o seu tempo e disposição de estudo. Muitos não têm acessibilidade digital e letramento digital capaz de suprir as suas demandas educacionais. ...

Cada obstáculo imposto no seu caminho, então, o afasta cada vez mais das possibilidades de ingresso ao Ensino Superior. O que mostraram as pesquisas realizadas durante a Pandemia, por exemplo. Foram esses alunos os que mais sofreram os impactos da suspensão das aulas presenciais, em todos os níveis de ensino, por um conjunto de desassistências sociais diversas. O que significa que as suas oportunidades de ruptura com o seu status social, através da ascensão escolar, são quase nulas dada a falta de políticas públicas efetivamente compromissadas com esse direito fundamental.

Para eles quaisquer mínimas desestabilizações em um momento tão importante de suas vidas, como é o Enem, significa um tsunami sobre seus sonhos, suas esperanças, suas expectativas. Suas histórias de perdas e decepções sociais são tão dilacerantes que já trivializaram o seu ímpeto de postergação ou desistência, a fim de mitigar as frustrações e os desalentos.

Por isso, o tal “balão de ensaio” funciona, porque eles têm uma projeção das suas habilidades, das suas competências, dos seus conhecimentos para fazer a prova, e sabem, quase sempre, que ela não é muito grande. Que eles vão ter que driblar muitas variáveis para reduzir a distância que os separa dos “bem preparados”; sobretudo, na redação. E de repente, estão sendo subliminarmente confrontados a pensar obedientemente, a silenciar a sua criatividade, a sua liberdade de expressão. Mais uma pedra a pesar sobre os ombros e cansar demasiadamente a esperança.

É tudo muito triste! O Enem foi criado para encurtar distâncias sociais, para promover mais igualdade de acesso às universidades, para oportunizar novos paradigmas para o país, e de repente... sob o silêncio ensurdecedor de milhares de pessoas, anônimas e influentes, ele deixa de ser um projeto de Estado para se tornar um projeto de governo. Sem se importar com o retrocesso que esse movimento representa. Sem se importar com as demandas do mercado de trabalho. Sem se importar com o desenvolvimento científico e tecnológico. Sem se importar com absolutamente nada.

A desconstrução do Enem para dar lugar aos caprichos, aos devaneios e as ignorâncias político-ideológicas em curso, não pune só a sociedade, pune o país como um todo. Pune o desenvolvimento. Pune o progresso. Pune a ciência. Pune o comércio. Pune a arrecadação de divisas. Pune... Por anos, por décadas, por séculos.

De modo que é impossível não pensar nas palavras de Paulo Freire, quando disse que “Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. A continuar como estamos, então, ...