quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A política e sua tendência aos “regimes autoritários de estimação”


A política e sua tendência aos “regimes autoritários de estimação”

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A diplomacia internacional tem como fundamento básico, o respeito à soberania dos povos, o que significa que cada país tem o poder de decidir e legislar dentro dos seus limites territoriais. No entanto, essa premissa não é capaz de alterar o status das ações, das decisões e dos fatos que acontecem dentro de cada espaço geográfico específico. Manifestações arbitrárias, autoritárias, violentas, opressivas ou ditatoriais não deixam de ser o que são pelo respeito que se dá à soberania. Elas são o que são. Nenhum verniz, nenhum adorno, nenhuma palavra, pode torná-las mais palatáveis, mais inofensivas ou menos brutais.

No entanto, valendo-se desse subterfúgio, dessa interpretação tendenciosa, não é raro que, por razões ideológicas e/ou mercantis, algumas lideranças mundiais passam a tecer um tipo de relação bizarra que transforma esses países em “regimes autoritários de estimação”. Há uma tendência por essas lideranças de invisibilização ou desconsideração do autoritarismo empregado pelo outro, em nome de seus próprios interesses.

O que em relação ao olhar do mundo se configura em diferentes interpretações. Alguns atribuem esse tipo de comportamento uma sinalização de caráter interno, ou seja, um aviso subliminar aos seus cidadãos de que existe uma possibilidade, mesmo que remota, que em algum momento aquelas práticas e condutas possam vir a ser aplicadas dentro do seu país. O que seria, portanto, uma carta na manga para coibir ou afugentar quaisquer potenciais discordâncias e insatisfações populares quanto ao regime vigente.

Outros apenas encontram eco nesses regimes. O que significa que tais países representam exatamente o modo de governar que eles gostariam de exercer; mas, pela dinâmica de seus países encontram impossibilidades jurídicas e burocráticas para fazê-lo a contento. Então, eles passam a exercitar certo tipo de admiração, de culto, de simpatia, como a expressão de um alento para suas idealizações mais secretas.

E há, também, aqueles que pensam que tudo não passa de um movimento no campo da “política da boa vizinhança”, que tem como objetivo prospectar eventuais perspectivas de consolidação de projetos econômicos. Por essa razão, evitam-se rusgas ou comentários “indesejáveis” para manter as relações pacificadas e potencialmente profícuas. Do tipo “amigos, amigos, negócios à parte”.

Mas, seja porque motivo for, o fato de essa relação existir estabelece uma compreensão clara de como o ser humano se encontra no fim da fila das prioridades. A final de contas, esses regimes tratam do poder pelo poder. Os cidadãos estão ali, no meio do seu caminho, podendo ser úteis como massas de manobra ou como obstáculos a serem superados. Só isso. O que eles precisam, querem, aspiram, sonham, ... nada disso importa, nada disso entra na conta do governo. Porque os regimes autoritários são narcísicos, eles supervalorizam a si mesmos, necessitando total reconhecimento de seus feitos e conquistas, enquanto desvalorizam os demais. 

Em suma, o que é prioridade nesses regimes é a ênfase ao culto do líder, de modo que quaisquer oposições ou supostas calúnias a respeito dessa figura são editadas ou silenciadas. Razão pela qual  busca-se consolidar um único partido político, centralizando o poder e garantindo um papel importante na doutrinação popular, uma ferramenta importante para a exacerbação do nacionalismo. De modo que para garantir o sucesso desse processo, eles utilizam das práticas de terror e de censura. 

Entretanto, em pleno mundo contemporâneo, em plena era das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), a realidade dos regimes autoritários extrapola suas próprias fronteiras com muito mais facilidade do que há pouco mais de meio século. De modo que quaisquer tentativas de alegar desconhecimento, ou desinformação, ou ignorância a respeito do que acontece em qualquer canto do mundo, soa propositadamente infame.

Basta uma passada de olhos pela mídia internacional para ser soterrado por uma avalanche de notícias sobre acontecimentos terríveis saídos do forno.  Gente que sumiu de repente. Gente que foi presa por manifestação contra o governo. Jornalistas agredidos ou mortos durante o trabalho. Veículos de imprensa depredados. E por aí vai.

E o que é mais estarrecedor nesse processo é constatar que o número de países com viés arbitrário, autoritário, violento, opressor ou ditatorial tenta se ampliar mundo afora, particularmente, pelo trabalho da extrema-direita. O que essas pessoas não entendem é que se conseguirem, em algum momento, destruir a Democracia, terão restado inúmeros regimes autoritários que começarão a brigar entre si, em nome da hegemonia mundial. Porque não se pode jamais esquecer de que os regimes autoritários são narcísicos, o que dificulta pensar em eventuais alianças ou em coalizões bem-sucedidas. Ora, é o poder que está em jogo.

Porém, enquanto eles se lançam nessa empreitada o mundo está se deteriorando a olhos vistos. Seja pelos desafios ambientais hercúleos. Seja pelos desafios econômicos, os quais incluem a pobreza, a miséria, o desemprego, a inflação, os altos juros, a desaceleração produtiva. Seja pelas doenças que emergem e se alastram com voracidade sobre as populações. ... Individual ou coletivamente esses fenômenos estão levando o planeta a um cenário de desolação, a um imenso deserto de vida, de esperança, de criatividade, de trabalho, de dignidade, ... E mesmo assim, ainda, há quem queira ter “regimes autoritários de estimação”.

Como escreveu David Horowitz, “A questão nunca é a questão; a questão é sempre o PODER”. Cultivar “regimes autoritários de estimação” acaba, então, expressando a certeza de que “A adoração do Estado é a adoração da força. Não há ameaça mais perigosa para a civilização do que um governo de homens incompetentes, corruptos ou vis. Os piores males que a humanidade já suportou foram infligidos pelos governos” (Ludwig Von Mises – economista austríaco).

Desse modo, “Uma diferença fundamental entre as ditaduras modernas e todas as outras tiranias do passado é que o terror não é mais usado como um meio para exterminar e assustar os oponentes, mas como instrumento para governar massas de pessoas que são perfeitamente obedientes” (Hannah Arendt – filósofa alemã).

Afinal de contas, esse tipo de obediência só se torna possível a partir da construção de argumentos impactantes, por exemplo, “Onde livros são queimados, no fim, as pessoas também serão queimadas” (Heinrich Heine – escritor e poeta alemão). Simples assim. Porque, apesar de toda obviedade expressa, ainda, há quem não compreenda que “A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos a frente” (José Saramago - Ensaio sobre a cegueira).