As
Balsas do Inferno
Por
Alessandra Leles Rocha
Então, é assim?! “Centenas de balsas de garimpo ilegal
desafiam fiscalização e tomam conta do trecho do rio Madeira, na Amazônia” 1, e nenhuma autoridade se manifesta a
respeito. O completo silêncio é mais eloquente do que quaisquer palavras ou
declarações, porque visibiliza a ideia pavorosa de que o Brasil é um país que
não respeita as leis, a sua gente e/ou a sua biodiversidade.
A questão é que não fica apenas
no desrespeito. Os impactos negativos que estão se desenvolvendo sobre a
Amazônia irão repercutir rapidamente sobre todo o país e, de algum modo, sobre
o restante do mundo.
Afinal, a atividade de garimpo
promove desde desvio dos cursos d’água, desmonte hidráulico (no caso de
garimpagem mecânica), aterramento de rios, até a contaminação do solo, ar e
águas através de metais pesados, especialmente, o mercúrio. O que representa um
conjunto de danos irreparáveis e definitivos.
Porque as alterações paisagísticas
não só desviam os cursos d’água, como promovem a extinção da flora e da fauna
locais. Sem contar, os desabamentos de grutas e soterramentos decorrentes da
utilização de bombas de alto impacto que, além de provocar grandes erupções e
desestabilizações no terreno, contaminam o local com chumbo.
No entanto, o pior dos efeitos está
na utilização do mercúrio para a extração de ouro. Ele permite formar uma liga
que facilita a identificação e comprovação da existência de ouro no material extraído.
Cada vez que essa liga se solidifica ela precisa ser queimada, o que ocasiona a
eliminação do mercúrio na atmosfera, algo demasiadamente tóxico. Portanto, o
mercúrio acaba contaminando o solo, a água, a flora e a fauna, na medida em que
os rejeitos contaminados se espalham.
Esse é um problema tão sério e
desafiador mundialmente que, em 2017, a Organização das Nações Unidas (ONU) propôs
a Convenção de Minamata. O nome é uma referência ao acidente ocorrido na Baía
de Minamata, no Japão, quando milhares de pessoas morreram ou ficaram
gravemente doentes após consumirem peixes contaminados por mercúrio.
Assim, o objetivo desse
documento, assinado por 132 países, incluindo o Brasil, “é proteger a saúde humana e o meio ambiente dos efeitos adversos do
mercúrio, um elemento onipresente que pode causar desde malformações congênitas
a doenças renais” 2.
A Convenção busca, portanto,
conter “as liberações antropogênicas de
mercúrio em todo o seu ciclo de vida: mineração, importação e exportação,
produtos e processos, emissões para a atmosfera, liberações para o solo e a
água, locais contaminados, gerenciamento de resíduos e muitos outros”. Tendo
em vista que “a exposição pode prejudicar
o cérebro, o coração, os rins, os pulmões e o sistema imunológico. É especialmente
perigoso para bebês e crianças pequenas, afetando sua capacidade de pensar e
aprender” 3.
Viram o tamanho desse imbróglio?!
Isso explica o desespero das comunidades indígenas, que estão presenciando in loco os acontecimentos. Que estão sendo prejudicadas e contaminadas à
revelia dos seus direitos naturais.
A reportagem que alerta sobre o
fato de que a “Funai proíbe equipe da
Fiocruz de levar assistência aos Yanomami em meio à desnutrição, surto de
malária e abandono do governo” 4, acaba,
portanto, não fazendo justiça a dimensão da tragédia. A realidade dos povos
originários brasileiros, na Amazônia, tende a ser muito pior do que se imagina,
ao ponto de que a Fundação Nacional do Índio (Funai) vetou pesquisa sobre
contaminação de mercúrio entre yanomamis proposta pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
5.
Mas, se as perdas locais são inúmeras
havemos de ampliar o raio de visão sobre o assunto. Ora, os incêndios e os
desmatamentos provocados em larga escala, nos últimos três anos, que sustentam
a expansão de novas fronteiras para agropecuária, estariam, então, sob ameaça. Agricultura
e criação de gado em solo contaminado, com água contaminada, não sei se isto seria
um bom negócio.
É preciso entender que metais
pesados, tais como o chumbo, o arsênio, o mercúrio,
o alumínio, o cromo, o níquel e o cádmio, não podem ser metabolizados pelas células
humanas, o que leva a um processo de bioacumulação no organismo capaz de
desenvolver inúmeras doenças. Dentre elas estão alterações cerebrais, diversos
tipos de câncer, anemia, Parkinson, Alzheimer, problemas renais e hepáticos.
Talvez, agora, diante dessa breve
exposição seja possível começar a entender que a questão ambiental não se
resume em si mesma. Não, não dá para dissociá-la da saúde pública, da qualidade
de vida, da economia, da produção, da alimentação, dos recursos hídricos, do
uso e ocupação do solo, da geração de resíduos e da educação, porque todos
esses aspectos representam demandas do ser humano.
Portanto, não é possível priorizar
um, ou alguns, em detrimento de outro, ou outros. Tudo está conectado. Em caso
de desconsideração ou negligência, o efeito dominó acontece. Só não se esqueça
de que ele não poupa ninguém; de um jeito ou de outro, todos acabam respingados
pelos desdobramentos e consequências. Você pode acabar como passageiro
involuntário das “Balsas do Inferno”.
Afinal, a história de “pagar para ver”
não é uma hipótese a se considerar; pois, este não é um risco calculável.
1 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/11/24/centenas-de-balsas-de-garimpo-ilegal-desafiam-fiscalizacao-e-tomam-conta-de-trecho-do-rio-madeira-na-amazonia.ghtml
2 https://brasil.un.org/pt-br/140451-convencao-de-minamata-completa-4-anos-de-combate-ao-mercurio-com-novo-site
3 Idem 2.