quinta-feira, 25 de novembro de 2021

As Balsas do Inferno


As Balsas do Inferno

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Então, é assim?! “Centenas de balsas de garimpo ilegal desafiam fiscalização e tomam conta do trecho do rio Madeira, na Amazônia” 1, e nenhuma autoridade se manifesta a respeito. O completo silêncio é mais eloquente do que quaisquer palavras ou declarações, porque visibiliza a ideia pavorosa de que o Brasil é um país que não respeita as leis, a sua gente e/ou a sua biodiversidade.

A questão é que não fica apenas no desrespeito. Os impactos negativos que estão se desenvolvendo sobre a Amazônia irão repercutir rapidamente sobre todo o país e, de algum modo, sobre o restante do mundo.

Afinal, a atividade de garimpo promove desde desvio dos cursos d’água, desmonte hidráulico (no caso de garimpagem mecânica), aterramento de rios, até a contaminação do solo, ar e águas através de metais pesados, especialmente, o mercúrio. O que representa um conjunto de danos irreparáveis e definitivos.

Porque as alterações paisagísticas não só desviam os cursos d’água, como promovem a extinção da flora e da fauna locais. Sem contar, os desabamentos de grutas e soterramentos decorrentes da utilização de bombas de alto impacto que, além de provocar grandes erupções e desestabilizações no terreno, contaminam o local com chumbo.

No entanto, o pior dos efeitos está na utilização do mercúrio para a extração de ouro. Ele permite formar uma liga que facilita a identificação e comprovação da existência de ouro no material extraído. Cada vez que essa liga se solidifica ela precisa ser queimada, o que ocasiona a eliminação do mercúrio na atmosfera, algo demasiadamente tóxico. Portanto, o mercúrio acaba contaminando o solo, a água, a flora e a fauna, na medida em que os rejeitos contaminados se espalham.

Esse é um problema tão sério e desafiador mundialmente que, em 2017, a Organização das Nações Unidas (ONU) propôs a Convenção de Minamata. O nome é uma referência ao acidente ocorrido na Baía de Minamata, no Japão, quando milhares de pessoas morreram ou ficaram gravemente doentes após consumirem peixes contaminados por mercúrio.

Assim, o objetivo desse documento, assinado por 132 países, incluindo o Brasil, “é proteger a saúde humana e o meio ambiente dos efeitos adversos do mercúrio, um elemento onipresente que pode causar desde malformações congênitas a doenças renais” 2.

A Convenção busca, portanto, conter “as liberações antropogênicas de mercúrio em todo o seu ciclo de vida: mineração, importação e exportação, produtos e processos, emissões para a atmosfera, liberações para o solo e a água, locais contaminados, gerenciamento de resíduos e muitos outros”. Tendo em vista que “a exposição pode prejudicar o cérebro, o coração, os rins, os pulmões e o sistema imunológico. É especialmente perigoso para bebês e crianças pequenas, afetando sua capacidade de pensar e aprender” 3.

Viram o tamanho desse imbróglio?! Isso explica o desespero das comunidades indígenas, que estão presenciando in loco os acontecimentos.  Que estão sendo prejudicadas e contaminadas à revelia dos seus direitos naturais.

A reportagem que alerta sobre o fato de que a “Funai proíbe equipe da Fiocruz de levar assistência aos Yanomami em meio à desnutrição, surto de malária e abandono do governo” 4, acaba, portanto, não fazendo justiça a dimensão da tragédia. A realidade dos povos originários brasileiros, na Amazônia, tende a ser muito pior do que se imagina, ao ponto de que a Fundação Nacional do Índio (Funai) vetou pesquisa sobre contaminação de mercúrio entre yanomamis proposta pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) 5.

Mas, se as perdas locais são inúmeras havemos de ampliar o raio de visão sobre o assunto. Ora, os incêndios e os desmatamentos provocados em larga escala, nos últimos três anos, que sustentam a expansão de novas fronteiras para agropecuária, estariam, então, sob ameaça. Agricultura e criação de gado em solo contaminado, com água contaminada, não sei se isto seria um bom negócio.

É preciso entender que metais pesados, tais como o chumbo, o arsênio, o mercúrio, o alumínio, o cromo, o níquel e o cádmio, não podem ser metabolizados pelas células humanas, o que leva a um processo de bioacumulação no organismo capaz de desenvolver inúmeras doenças. Dentre elas estão alterações cerebrais, diversos tipos de câncer, anemia, Parkinson, Alzheimer, problemas renais e hepáticos.

Talvez, agora, diante dessa breve exposição seja possível começar a entender que a questão ambiental não se resume em si mesma. Não, não dá para dissociá-la da saúde pública, da qualidade de vida, da economia, da produção, da alimentação, dos recursos hídricos, do uso e ocupação do solo, da geração de resíduos e da educação, porque todos esses aspectos representam demandas do ser humano.

Portanto, não é possível priorizar um, ou alguns, em detrimento de outro, ou outros. Tudo está conectado. Em caso de desconsideração ou negligência, o efeito dominó acontece. Só não se esqueça de que ele não poupa ninguém; de um jeito ou de outro, todos acabam respingados pelos desdobramentos e consequências. Você pode acabar como passageiro involuntário das “Balsas do Inferno”. Afinal, a história de “pagar para ver” não é uma hipótese a se considerar; pois, este não é um risco calculável.