Celeiro
do mundo. Barracão da fome.
Por
Alessandra Leles Rocha
Se engana quem pensa que é
possível olhar a vida até onde os olhos alcançam. Nada é tão simples, tão
fácil, tão elementar como parece ser. E é por conta desse “erro de cálculo” que os acontecimentos ganham proporções e
desdobramentos inesperados, nos pegando de calças curtas e sem quaisquer planos
alternativos para driblar ou resolver efetivamente as adversidades.
Então, cansada de me deparar com
esse movimento caótico do mundo, com toda essa displicência blasé que toma
conta da contemporaneidade, decidi trazer uma reflexão sobre a fome, posto que,
é Dia Mundial da Alimentação 1 e
segundo o Secretário-Geral das Nações Unidas, “Hoje, quase 40% da humanidade – 3 bilhões de pessoas – não conseguem
pagar por uma dieta saudável. A fome está aumentando. Tal como a subnutrição e
a obesidade. Os impactos econômicos da COVID-19 pioraram ainda mais a situação.
A pandemia deixou mais de 140 milhões de pessoas sem acesso aos alimentos que
precisam. Ao mesmo tempo, a maneira como produzimos, consumimos e desperdiçamos
alimentos tem um grande impacto no nosso planeta. Exercendo uma pressão histórica
sobre os nossos recursos naturais, clima e meio ambiente – e nos custando
trilhões de dólares por ano” 2.
Mais do que o prato vazio, a
barriga doendo, o corpo sem força, o retrato brutal da indignidade humana, a
questão alimentar é uma bomba-relógio que pode explodir e lançar estilhaços por
diversos setores da sociedade. Nenhum ser humano sobrevive se não estiver
alimentado adequadamente. Porque o corpo é uma máquina que depende dos combustíveis
certos para operar de maneira satisfatória. Caso contrário, todas as suas
habilidades, competências, aptidões serão exercidas abaixo das expectativas ou,
em alguns casos, nem serão. De modo que um corpo fragilizado pela carência alimentar
e nutricional é um corpo vulnerável ao adoecimento precoce, um alvo fácil para
o oportunismo de inúmeras doenças.
Não bastassem aquelas decorrentes
do mau funcionamento orgânico, tais como obesidade, gastrite, colesterol
elevado, hipertensão arterial, desnutrição, anemia, doenças degenerativas, há
também a potencialização daquelas provocadas por vírus, bactérias, fungos e
protozoários, porque encontram o sistema imunológico do indivíduo debilitado e
incapaz de protegê-lo contra eventuais invasores. E se somarmos a esse quadro a
inacessibilidade as medidas básicas de higiene, ao saneamento básico, à
potabilidade da água de consumo, a expectativa de vida das pessoas se torna
ainda mais limitada.
Afinal, se consolida um ciclo de
problemas que, pelo fato de se retroalimentarem, torna mais difícil a sua
ruptura. Basta pensar na quantidade de pessoas que vêm sendo levadas a viver
nas ruas, em todo o país, por conta das conjunturas econômicas, para vislumbrarmos
a dimensão do que estou dizendo. Esse contingente chega para se somar a todos
aqueles que já sobrevivem em condições de alta precariedade e vulnerabilidade social,
ou seja, em ocupações, em lixões, em palafitas, em cortiços. Eles representam o
retrato do Brasil que permite e aceita que uma parte significativa da sua
população não desfrute de nenhum dos direitos sociais previstos na Constituição
Federal de 1988.
Sua fome de alimentos é só uma
face da imensa fome de direitos humanos que padecem essas pessoas. Mas, também,
é o gatilho para sobrecarregar a Saúde e, por tabela, a Economia nacional. Ora,
de um jeito ou de outro o drama dessas pessoas acaba nas portas dos hospitais e
das unidades de saúde. Às vezes por vontade própria. Às vezes pela caridade de
alguém. Às vezes pela fatalidade do cotidiano. Às vezes em estado agudo. Às vezes
cronificado. Às vezes só para o último adeus. Acontece que sem mudança na
perspectiva social dessas pessoas, entra ano e sai ano, a dinâmica será sempre
essa. O abandono. O desalento. A desassistência. Como quem assiste a vida
passar como mero figurante da própria história, desfocado, no fundo da imagem. Afinal, o que podem fazer os seres humanos nessas condições?
Do ponto de vista prático,
talvez, nada. Mas, doentes do corpo e da alma eles vagueiam errantes pelas
cidades, sem se dar conta, tantas vezes, das mazelas que trazem consigo. De repente,
a geografia dos espaços se torna palco da disseminação de doenças importantes 3, porque apesar de estarmos no século
XXI, seres humanos continuam seres humanos e suas doenças sendo transmitidas da
mesma forma. Exemplos disso são a Conjuntivite, a escabiose (sarna), a
pediculose (piolho), a tuberculose, a meningite, a pneumonia, a gripe. Vale ressaltar
que muitas das doenças presentes no país dispõem de vacinas para sua prevenção,
é o caso da hepatite B, da tuberculose, da febre amarela, da difteria,
do tétano, do sarampo, da rubéola, da caxumba, por exemplo. Mais uma razão, portanto,
para se defender a imunização da população, ao invés de campanhas negocionistas
fundamentadas em Fake News.
Por isso, que as políticas
públicas assistenciais; sobretudo, no momento atual do Brasil, se tornam cada
vez mais imprescindíveis. É preciso conter rapidamente o avanço da fome e da
insegurança alimentar no país; bem como, os seus desdobramentos. Entretanto,
isso não é tudo, porque há mais de 500 anos esse quadro faz parte da história
nacional. O Brasil que já viveu o fenômeno da “indústria da seca”, no Nordeste, entre as décadas de 60 e 80,
sempre fez vista grossa para uma outra, de caráter secular, a “indústria da
fome”. Com o propósito de manter os parâmetros das desigualdades bem
delimitados a fim de favorecer os interesses de uns e outros, quando o assunto
é a fome e a miséria, então, tudo caminha na base dos placebos, das medidas
inócuas, das esmolas, das raspas e dos restos. Pois é, quem diria que o celeiro
do mundo, na verdade, é o barracão da fome!
Já passou da hora de entender a fome
como uma questão coletiva e não individual, como uma responsabilidade que cabe
a todos e não apenas a esse ou a aquele. Como dizia Dom Hélder Câmara, “A fome dos outros condena a civilização dos
que não têm fome”. Porque ela é a ponta do iceberg de tormentas sociais que
afligem a sociedade em todos os tempos e lugares. Ela fomenta a discórdia, as
tensões, as violências, as rupturas éticas e morais. Razão pela qual não nos
cabe indiferença, ou negligência, ou inação para enfrentá-la. Afinal de contas,
não podemos nos esquecer de que “Aqui na
Terra, a fome continua. A miséria, o luto, e outra vez a fome. [...]” (José
Saramago – Fala do Velho do Restelo ao Astronauta) 4.
1
Desde a criação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
(FAO), em 1981, a data passou a ser celebrada. Atualmente são mais de 150
países envolvidos na conscientização da opinião pública sobre as questões
relativas à nutrição e à alimentação.