sábado, 21 de agosto de 2021

A absoluta relatividade das deficiências humanas


A absoluta relatividade das deficiências humanas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A recente fala do Ministro da Educação sobre alunos deficientes causou enorme espanto e repercussão negativa entre a população. Mas, por que o espanto? Ele é só mais um representante da extrema-direita nacional, conservador e cheio de preconceitos, presente no governo e que, por isso, encontra eco em uma parcela significativa da sociedade brasileira.

Acontece que, nos últimos anos, principalmente nos últimos 3, essas pessoas que andavam mascarando e contendo suas deselegâncias perniciosas encontraram respaldo e legitimidade para regurgitar seus absurdos sem o menor constrangimento. Fique, então, apresentado: essa é a face rançosa do país. Aquela impregnada pela identidade colonial, a qual insiste, terminantemente, em não se despregar.

Por isso, pouco importa que ele seja Ministro da Educação ou de qualquer outra pasta, porque os riscos de uma verborragia, como essa, seriam os mesmos. Nessa situação, o cargo em si não é capaz de promover mudanças interiores tão profundas, porque o mal está muito além da forma e do conteúdo, está arraigado na essência humana, em todos os seus valores e princípios, em cada sinapse nervosa que corre pelo corpo. Não se esqueçam de que o próprio é, também, um representante religioso da fé cristã e, mesmo assim, consegue não despender empatia, respeito e fraternidade, como se espera.

Mas, apesar de todos os pesares, embora essas pessoas estejam se considerando na “crista da onda”, o mundo ao longo de décadas vem trabalhando arduamente no sentido de desconstruir esse tipo de visão tacanha e preconceituosa, em relação aos deficientes. Afinal, a deficiência é uma questão absolutamente relativa.

Primeiro, porque pessoas podem nascer deficientes; mas, também, podem se tornar deficientes, por alguma razão, ao longo da vida. Não se trata, então, da incapacidade de um casal ter ou não filhos deficientes. Muitos, inclusive, foram e, ainda, são rejeitados, ou invisibilizados, por suas famílias em razão desse tipo de pensamento. Porque seus pais, especialmente aqueles mais conservadores, tendem a se sentir inferiorizados no seu orgulho, na sua vaidade.

Segundo, porque a deficiência não é um fator limitante para a aquisição e desenvolvimento de habilidades e competências. O conhecimento pode ser construído por diferentes caminhos, a partir das demandas individuais de cada um. Mesmo quem não apresenta deficiência física ou mental constrói seus conhecimentos de maneira muito singular. Ninguém aprende da mesma forma, na mesma quantidade, ... nessa vida, a verdade é que ninguém chegará ao fim sabendo tudo. Cada um adquire o seu próprio quinhão.

Por fim, estamos no século XXI. Até aqui, a parceria entre Educação, Ciência e Tecnologia trouxe avanços importantes no campo das deficiências. A Ciência sabe muito mais sobre as causas e eventuais consequências dos diferentes tipos. O mercado já oferece insumos e equipamentos que garantem melhor qualidade de vida aos portadores. E a Educação tem construído estratégias e modelos de ensino, os quais possibilitam um movimento de inclusão muito mais fundamentado e garantidor de autonomia e autoralidade para os deficientes.

Parafraseando Caetano Veloso, “gente é pra brilhar, gente é pra ser feliz” 1.  Cada vez mais, a deficiência, no século XXI, se coloca em franca ruptura dos paradigmas preconceituosos e arcaicos, por conta desse direito existencial básico de todo ser humano, a felicidade. Ser feliz; não apenas, estar feliz de vez em quando.

Aliás, na hora de cumprir com as obrigações cidadãs do dia a dia, pagar impostos, votar, ninguém tem a ousadia de dizer que “pessoas deficientes atrapalham”. Abrem um largo sorriso e só faltam lhes estender tapete vermelho, para que o ato se dissocie de qualquer peso burocrático e se torne prazeroso, de algum modo “feliz”.  

Segundo Gonzalez Pecotche, educador e pedagogista, “todo conceito que o homem não modifica com sua evolução, torna-se um preconceito”. Por isso, pare e pense, quem disse que a humanidade é perfeita, a expressão ideal do ser? Não, não é. Uma observação rápida ao redor, para perceber que a deformidade, a deficiência, é regra e não exceção. Não se engane em pensar que a ausência de deficiência física ou mental em um indivíduo resume a história, porque não.

Há centenas de milhares de deficientes da alma, da ética, da moral, da civilidade, transitando entre nós, distribuindo farpas e insultos à revelia, diariamente. E essa gente está em todo lugar, inclusive na escola. São alfabetizadas. Muitas vezes, letradas. Mas, não conseguem se despir dessa nódoa preconceituosa e agregada de hipocrisia, porque no fundo, “muitas pessoas pensam que estão a pensar quando estão apenas a rearrumar os seus preconceitos” (William James – médico e um dos fundadores da psicologia moderna).