sexta-feira, 30 de julho de 2021

Ardendo em consumição


Ardendo em consumição

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O fogo não foi o responsável pela destruição. Ela começou antes, bem antes, quando os apelos, as súplicas, as reportagens, as medidas judiciais já sinalizavam o grau de abandono e de deterioração da instalação cultural, a Cinemateca Brasileira. Ou se formos mais profundos e metódicos, até poderemos perceber que foi, ainda mais, anterior a todo esse processo. Quando a destruição emergiu na mente de algumas pessoas, como mecanismo capaz de dar forma a outra cultura, a do cancelamento ou negação.

Não se trata, simplesmente, de apagar os registros da história no campo cultural, a fim de romper definitivamente com quaisquer possibilidades de acesso. Não, é pior do que isso. É negar que um dia aquela história existiu para que se justifique tecer uma outra, formulada e moldada, segundo os interesses e as necessidades de quem está no poder. Trata-se de constituir um mecanismo de controle sobre as formas e conteúdos das expressões culturais no país.  

Os que pensam assim pretendem instituir uma nova ordem e, para isso, é preciso desfazer do que já existe, dar um reset em décadas de conhecimentos adquiridos e armazenados. Como se a vida pudesse se constituir a partir do novo, que chega pela arbitrariedade impositiva, sem possibilidade alguma de escolha, de decisão, cujo propósito é homogeneizar o pensamento, a criatividade e a expressão das pessoas. Sem contar que, segundo George Orwell, “a história é escrita pelos vencedores”, e é assim, que eles se entendem.

Pois é, Pedro Bandeira, então, acertou em cheio quando criou a personagem Doutor Q.I., no livro A Droga da Obediência, de 1984. Afinal, o mundo sempre flertou com o risco de mentes desejosas por subjugar a humanidade as suas vontades e quereres, muito além da ficção. Afinal, esse é o Fascismo, a ideologia política, de caráter ultranacionalista e autoritária, em geral, manifesta pelo poder ditatorial e repressor, assegurada por forte apelo persuasivo social e econômico.

Algo que nunca se manteve distante da realidade do mundo, seja antes ou depois das Grandes Guerras. E a explicação para isso é muito simples, sede de poder. Basta alguém com o caráter deformado, a mente doentia, para colocar em curso o Fascismo, porque, logo, outros com o mesmo perfil identitário se aproximam e se aliam ao projeto. Razão pela qual essa ideologia consegue sobreviver ao longo do tempo, passando de geração a geração, se adequando as especificidades de cada lugar.

E o que dá suporte para essa empreitada é justamente o controle dos meios de comunicação em massa e das informações oriundas, principalmente, da Educação e da Cultura. Porque, segundo André Malraux, “A cultura, sob todas as formas de arte, de amor e de pensamento, durante milênios, capacitou o homem a ser menos escravizado”. Essa possível liberdade, então, iria na contramão dos interesses fascistas, na medida em que abriria as portas para as escolhas, as reflexões, a criticidade em qualquer circunstância, pois já se teria consolidado a vivência, a experienciação.

O que no caso do cinema, a 7ª Arte, é bastante visível. Porque os registros cinematográficos oportunizam, de maneira singular, uma acessibilidade muito mais ampliada ao grande público. Ainda que este tenha eventuais limitações cognitivas e/ou intelectuais, o cinema consegue lhe proporcionar uma possibilidade de compreensão e aquisição de informações e conhecimentos, graças a sua construção semiótica.

O que quer dizer que as representações cinematográficas levam em consideração os signos, os símbolos, as imagens, a partir das manifestações que eles assumem linguisticamente ou não, no intuito de os converter reciprocamente entre os sistemas significantes aos quais estão integrados. Em suma, o cinema constrói significados, incluindo aquele pertinente à própria comunicação.

Sendo assim, não causa estranheza o fogo na Cinemateca Brasileira, em SP, no início da noite de ontem. Pode não fazer sentido para muitos; mas, fica evidente que há método na práxis empregada. Esse tipo de destruição é sim, autoexplicativa. Incêndios dessa magnitude, têm uma força metafórica muito mais intensa do que comburente, porque objetivam corromper a subjetividade humana, a tal ponto que impossibilite recuperar o que se perdeu. Haja vista a grande queima de livros pelos nazistas, em 1933, ou o incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 2018.

As chamas consumindo a Cinemateca eram, de alguma forma, a consumição de pedaços da nossa memória, da nossa cidadania, da nossa identidade. Cujos escombros darão a dimensão do que restou desse ser sobrevivente, embora mutilado. De modo que paira sim, uma apreensão sobre quando será a próxima vez, no contexto dessa vida que existe aos fragmentos, insistentemente, obstinados em resistir para dar alguma forma e, quem sabe, conteúdo a si mesma; visto que, cada vez mais, se aproxima de saber menos quem é de fato e de direito.