Ardendo
em consumição
Por
Alessandra Leles Rocha
O fogo não foi o responsável pela
destruição. Ela começou antes, bem antes, quando os apelos, as súplicas, as reportagens,
as medidas judiciais já sinalizavam o grau de abandono e de deterioração da instalação
cultural, a Cinemateca Brasileira. Ou se formos mais profundos e metódicos, até
poderemos perceber que foi, ainda mais, anterior a todo esse processo. Quando a
destruição emergiu na mente de algumas pessoas, como mecanismo capaz de dar
forma a outra cultura, a do cancelamento ou negação.
Não se trata, simplesmente, de
apagar os registros da história no campo cultural, a fim de romper
definitivamente com quaisquer possibilidades de acesso. Não, é pior do que
isso. É negar que um dia aquela história existiu para que se justifique tecer
uma outra, formulada e moldada, segundo os interesses e as necessidades de quem
está no poder. Trata-se de constituir um mecanismo de controle sobre as formas
e conteúdos das expressões culturais no país.
Os que pensam assim pretendem
instituir uma nova ordem e, para isso, é preciso desfazer do que já existe, dar
um reset em décadas de conhecimentos
adquiridos e armazenados. Como se a vida pudesse se constituir a partir do
novo, que chega pela arbitrariedade impositiva, sem possibilidade alguma de
escolha, de decisão, cujo propósito é homogeneizar o pensamento, a criatividade
e a expressão das pessoas. Sem contar que, segundo George Orwell, “a história é escrita pelos vencedores”, e
é assim, que eles se entendem.
Pois é, Pedro Bandeira, então, acertou
em cheio quando criou a personagem Doutor
Q.I., no livro A Droga da Obediência,
de 1984. Afinal, o mundo sempre flertou com o risco de mentes desejosas por subjugar
a humanidade as suas vontades e quereres, muito além da ficção. Afinal, esse é
o Fascismo, a ideologia política, de caráter ultranacionalista e autoritária, em
geral, manifesta pelo poder ditatorial e repressor, assegurada por forte apelo
persuasivo social e econômico.
Algo que nunca se manteve
distante da realidade do mundo, seja antes ou depois das Grandes Guerras. E a
explicação para isso é muito simples, sede de poder. Basta alguém com o caráter
deformado, a mente doentia, para colocar em curso o Fascismo, porque, logo,
outros com o mesmo perfil identitário se aproximam e se aliam ao projeto. Razão
pela qual essa ideologia consegue sobreviver ao longo do tempo, passando de geração
a geração, se adequando as especificidades de cada lugar.
E o que dá suporte para essa
empreitada é justamente o controle dos meios de comunicação em massa e das
informações oriundas, principalmente, da Educação e da Cultura. Porque, segundo
André Malraux, “A cultura, sob todas as
formas de arte, de amor e de pensamento, durante milênios, capacitou o homem a
ser menos escravizado”. Essa possível liberdade, então, iria na contramão
dos interesses fascistas, na medida em que abriria as portas para as escolhas,
as reflexões, a criticidade em qualquer circunstância, pois já se teria
consolidado a vivência, a experienciação.
O que no caso do cinema, a 7ª
Arte, é bastante visível. Porque os registros cinematográficos oportunizam, de
maneira singular, uma acessibilidade muito mais ampliada ao grande público. Ainda
que este tenha eventuais limitações cognitivas e/ou intelectuais, o cinema
consegue lhe proporcionar uma possibilidade de compreensão e aquisição de informações
e conhecimentos, graças a sua construção semiótica.
O que quer dizer que as
representações cinematográficas levam em consideração os signos, os símbolos,
as imagens, a partir das manifestações que eles assumem linguisticamente ou
não, no intuito de os converter reciprocamente entre os sistemas significantes
aos quais estão integrados. Em suma, o cinema constrói significados, incluindo
aquele pertinente à própria comunicação.
Sendo assim, não causa estranheza
o fogo na Cinemateca Brasileira, em SP, no início da noite de ontem. Pode não
fazer sentido para muitos; mas, fica evidente que há método na práxis empregada.
Esse tipo de destruição é sim, autoexplicativa. Incêndios dessa magnitude, têm
uma força metafórica muito mais intensa do que comburente, porque objetivam
corromper a subjetividade humana, a tal ponto que impossibilite recuperar o que
se perdeu. Haja vista a grande queima de livros pelos nazistas, em 1933, ou o incêndio
no Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 2018.
As chamas consumindo a Cinemateca
eram, de alguma forma, a consumição de pedaços da nossa memória, da nossa cidadania,
da nossa identidade. Cujos escombros darão a dimensão do que restou desse ser
sobrevivente, embora mutilado. De modo que paira sim, uma apreensão sobre
quando será a próxima vez, no contexto dessa vida que existe aos fragmentos,
insistentemente, obstinados em resistir para dar alguma forma e, quem sabe,
conteúdo a si mesma; visto que, cada vez mais, se aproxima de saber menos quem
é de fato e de direito.