Sobre
Invernos se seus Infernos desiguais
Por
Alessandra Leles Rocha
Enquanto as temperaturas caem no
país, a perspectiva de mortes se amplia vertiginosamente, muito além das 2 mil,
em média diária, pela COVID-19. Acontece que, por
trás da hipotermia letal que retira sumariamente a vida de milhares de
pessoas, o retrato do que começa efetivamente na próxima segunda-feira, 21 de
junho, esconde diversas outras faces da morte, sem que a população tenha a
devida dimensão.
Seja o retrato do inverno na
região norte brasileira, quando o volume dos rios ultrapassa os limites e invade
as cidades, comprometendo a relação humana com a carência do saneamento básico,
expondo as populações aos riscos de diversas doenças advindas das águas
contaminadas pelo esgoto não tratado e resíduos diversos lançados nos cursos d’água.
Seja o retrato do inverno nas
demais regiões do país, onde os números da pobreza e da miséria se alastram
como rastilho de pólvora, que expõem milhares de seres humanos ao desalento da
habitação urbana, nas vias públicas, em aglomerados insalubres sob total indigência.
O que significa que a tal estação
escancara, sem dó nem piedade, o panorama das desigualdades sociais no país e
coloca em risco a emergência de focos de doenças graves e de relevante
transmissibilidade, em meio a uma Pandemia em curso. Primeiro, porque nesse
recorte de análise, a vulnerabilidade social começa em um corpo insalubre, com
baixa resposta imunitária, com insatisfatório índice nutricional, com total
impossibilidade de responder satisfatoriamente aos tratamentos possíveis para
reverter os efeitos das adversidades do ambiente.
Segundo, porque essa
insalubridade decorre, em grande parte, das condições habitacionais dessas
pessoas. Dependendo da situação, o abrigo ou o desabrigo significa a mesma
coisa, tendo em vista a precariedade conjuntural. Uma casa inundada por água de
rio misturada com lixo e esgoto, não é melhor do que viver nas calçadas dos
centros urbanos, expostos a ratos, baratas, escorpiões surgidos de bueiros
abertos, os quais exalam todo tipo de vírus e bactérias.
No entanto, quando a sociedade
invisibiliza a pobreza e a miséria, ela se esquece de que esses entes transitam
pelos espaços geográficos; são os nômades da realidade perversa contemporânea. De
modo que, de um lado para outro, suas doenças vão deixando um rastro e
ampliando o risco de explodirem em novos surtos e epidemias. Sim, porque a
sociedade vira o rosto para essa gente, muda de calçada para não os confrontar,
fecha os vidros do carro, ... mas, em algum momento, vão pegar na maçaneta ou
corrimão de um prédio público, vão se sentar em um transporte coletivo, vão
utilizar um banheiro público, ... e as doenças, como bem ensinou o Sars-Cov-2,
são invisíveis.
Isso significa que o descaso com
o planejamento urbano, por exemplo, torna as enchentes decorrentes de grandes
volumes de chuva uma ameaça potencial para a Leptospirose – uma doença bacteriana grave transmitida pela urina
dos ratos -, Hepatite A – uma doença
viral que ataca o fígado, Febre Tifoide
– uma infecção bacteriana grave transmitida pela ingesta de água e alimentos
contaminados, Tétano - uma infecção
bacteriana grave transmitida por objetos contaminados que causam algum
ferimento no corpo, Dengue, Zika e Chikungunya – estas 3, sendo doenças virais transmitidas pelo
mosquito do gênero Aedes.
Além disso, a população
vulnerável, também, se depara com outras doenças importantes, tais como a Tuberculose – uma doença bacteriana grave
transmitida por contato direto com pessoas doentes e utensílios pessoais, que
afeta prioritariamente os pulmões, Doenças
Sexualmente Transmissíveis (DSTs) – Sífilis,
Aids, Gonorreia, Herpes Genital,
Clamídia, Vírus do Papiloma Humano, Hanseníase - uma doença bacteriana grave
transmitida por contato direto com secreções respiratórias de pessoas doentes,
que afeta prioritariamente a pele e os nervos periféricos, e a Escabiose (ou Sarna) – uma doença parasitária por contato direto com pessoas
doentes e utensílios pessoais, que afeta prioritariamente a pele.
Mas, não para por aí. Porque, as
doenças mentais desencadeadas pelo abuso de álcool e drogas ilícitas
(principalmente, o crack) têm desdobramentos sociais significativos, sobretudo,
a violência urbana. Afinal de contas, a indignidade social a que é lançada
milhares de vidas humanas no Brasil, tende a desenvolver um cenário caótico de desestruturação
populacional e abandono cidadão. De modo que essas pessoas passam a ocupar desordenadamente
o espaço das cidades a fim de satisfazerem os impulsos de suas manifestações patológicas.
Por isso é tão importante a
sociedade se dar conta de seus atos e omissões. O ser humano cidadão não é só
um assunto de natureza municipal, estadual ou federal; é um assunto de todos. E
se ele está distante, à margem da sociedade, mais uma razão para trazê-lo ao
centro das preocupações e atenções, porque direta ou indiretamente, os seus
problemas afetam os demais.
Isso quer dizer que a pobreza e a
miséria nos colocam numa posição de admissibilidade, ou não, de uma conjuntura
tão perversa e cruel. Embora, os cálculos estabelecidos pelo Banco Mundial em
relação a linha de pobreza no mundo expressem particularidades de cada país,
além do recorte temporal para análise são considerados o custo de elementos básicos
como habitação, vestuário, alimentação.
De modo que cabem as seguintes
reflexões feitas por Saramago, “Estamos a
destruir o planeta e o egoísmo de cada geração não se preocupa em perguntar
como é que vão viver os que virão depois. A única coisa que importa é o triunfo
do agora. É a isto que eu chamo a ‘cegueira da razão’” (El Cronista, 1998);
ou seja, “Nós estamos a assistir ao que
eu chamaria a morte do cidadão e, no seu lugar, o que temos e, cada vez mais, é
o cliente. Agora já ninguém nos pergunta o que é que pensamos, agora
perguntam-nos qual a marca do carro, de fato, de gravata que temos, quanto
ganhamos...” (El Mundo, 1998).
Portanto, se um número cada vez
maior de cidadãos não consegue satisfazer as suas demandas fundamentais, antes
do que se possa imaginar, essa sociedade terá paralisado o seu desenvolvimento
e o seu progresso. Terá perdido milhões de vidas, as quais teriam facilmente sido
protegidas se um olhar holístico de gestão pública tivesse norteado as
políticas desenvolvidas.
Porque, segundo escreveu Rui
Barbosa, “Onde está a felicidade? No amor,
ou na indiferença? Na obediência, ou no poder? No orgulho, ou na humildade? Na
investigação, ou na fé? Na celebridade, ou no esquecimento? Na nudez, ou na prosperidade?
Na ambição, ou no sacrifício? A meu ver, a felicidade está na doçura do bem, distribuído
sem ideia de remuneração. Ou, por outra, sob uma fórmula mais precisa, a nossa
felicidade consiste no sentimento da felicidade, generosamente criada por um
ato nosso”.
Um dia a Pandemia da COVID-19 irá arrefecer e o vírus encontrará um lugar para adormecer. Mas, e o resto que nos mata lenta e diariamente, hein? O que faremos diante de todas as Pandemias que a ‘cegueira da razão’ tenta esconder? Se nada for feito, talvez, virá delas o triste fim da humanidade, o último suspiro de quem nunca conseguiu respirar.