A
Cultura em risco...
Por
Alessandra Leles Rocha
De volta ao passado tenebroso dos
tempos trevosos? Nas voltas que o mundo dá, lá está a história a repetir mais
um quadro triste de perseguição à Cultura, ou mais precisamente, à Literatura.
Em nome de um radicalismo ideológico, que limite a consciência pelos parâmetros
da ignorância, as investidas têm sido desde a taxação com tributos mais
robustos até o banimento e a negação de determinadas obras e autores.
Aliás, a mais recente cruzada
ideológica, no sentido de invisibilizar diversos títulos, partiu da Fundação
Cultural Palmares (FCP) 1, órgão
ligado ao governo federal e “voltado à
promoção e preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos
decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira” 2. Uma atitude que, antes de mais nada,
contraria a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 216, parágrafo 1º, no
que diz respeito aos princípios que regem o Sistema Nacional de Cultura e seu respectivo
Plano Nacional.
O que significa, dentre outros
aspectos, ferir a diversidade das
expressões culturais, a universalização
do acesso aos bens e serviços culturais, a transversalidade das políticas culturais, e a democratização dos processos decisórios com participação e controle
social.
Há tempos não se via tamanho
desrespeito em relação à cultura. Talvez, a manifestação mais emblemática
contra os livros remonte dos tempos do nazismo, quando pilhas e pilhas deles
foram queimadas em praças públicas, por serem considerados impróprios pelo
Reich alemão.
Mas, o que é ser impróprio ou
não, em termos culturais, quando a identidade cultural de um povo é formada
pela diversidade e pluralidade de manifestações e conceitos? E os interesses
culturais individuais só se formulam e constituem a partir da oportunidade de
conhecer, de apreciar, de escolher por conta própria o que existe no mundo.
Por isso, as bibliotecas tão bem
traduzem essa compreensão. Ali estão os diversos tipos textuais - narração, argumentação,
descrição, injunção e exposição -, caracterizados por propriedades
linguísticas, como vocabulário, relações lógicas, tempos verbais, construções
frasais etc.; bem como, os gêneros textuais, os quais possuem uma função
comunicativa inserida em um contexto cultural, ou seja, livro de contos,
crônicas, romances, didáticos, receitas e outros. Todos expressos na figura de
textos que possuem um sentido e uma intenção comunicativa.
E cada obra é, por excelência, um
recorte do tempo, a definição de uma época e de seus valores e costumes; assim
como, a expressão, o olhar e o entendimento do autor. Daí a dimensão da riqueza
que se traduz naquelas linhas e entrelinhas.
Talvez, por essa razão, é que
eles incomodem tanto. Afinal, livros são livres. Foram das asas da imaginação,
da criatividade, do talento e da observação que se extraíram as penas para que
fossem escritas suas páginas.
De modo que todo esse processo
tem que repercutir no leitor, como manifestou Gilberto Dimenstein, “Só existe opção quando se tem informação...
ninguém pode dizer que é livre para tomar o sorvete que quiser se conhecer
apenas o sabor limão”.
Não é à toa que os próprios Parâmetros
Curriculares Nacionais (2008), para Linguagens, Códigos e suas Tecnologias,
trazem a seguinte consideração: “[...]é
na interação em diferentes instituições sociais (a família, o grupo de amigos,
as comunidades de bairro, as igrejas, a escola, o trabalho, as associações,
etc.) que o sujeito aprende as formas de funcionamento da língua e os modos de
manifestação da linguagem; ao fazê-lo, vai construindo seus conhecimentos
relativos aos usos da língua e da linguagem em diferentes situações. Também
nessas instâncias sociais o sujeito constrói um conjunto de representações
sobre o que são os sistemas semióticos, o que são as variações de uso da língua
e da linguagem, bem como qual o seu valor social”.
Então, quando o próprio governo
tolhe de maneira arbitrária a leitura, ele limita o cidadão de realizar essa
construção de conhecimento a partir da pluralidade literária. Isso significa
que ele não está simplesmente afrontando a cultura, no cerne da identidade
cultural do país; mas, contribuindo para que este mantenha as suas posições constrangedoras
no cenário mundial; seja na educação ou no mercado de trabalho.
Afinal de contas, esses cidadãos têm
seu letramento (ou multiletramentos) bastante inconsistentes e frágeis, para
sobreviver na esteira da competitividade contemporânea. Quando os alunos brasileiros são colocados sob
avaliações nacionais e internacionais seu desempenho é considerado pífio.
Sobretudo, em relação à leitura, uma
peça chave nos processos de construção do conhecimento. Porque é através dela
que se expande as fronteiras cognitivas e intelectuais do ser humano. No
entanto, uma maciça parcela dos alunos dispõe de uma prática de leitura muito aquém
do necessário.
Independentemente das razões que
justificam, ou pelo menos explicam, essa insuficiência, está o fato de que comparados
aos alunos de outros países, os brasileiros frequentam muito menos as
bibliotecas. Por aqui, esse hábito ainda é considerado incipiente, apesar de inúmeros
e bons projetos de leitura promovidos pelas bibliotecas em todo o país.
Então, querer impor a filosofia
do banimento e da negação de obras e autores, não muda o fato de que elas foram
escritas, de que aquelas ideias foram pensadas, de que há quem concorde com
elas, ...; mas, exerce subjetivamente uma influência de banimento e de negação da
literatura na vida do cidadão. Invisibilizá-la. Torná-la cada vez mais inacessível.
São instrumentos de desconstrução de valores culturais, especialmente,
considerando as camadas menos privilegiadas da sociedade. Na verdade, o que se
tenta com essas práticas é enviesar a Cultura, a fim de fazê-la atender aos
interesses de quem está no poder.
Contudo, gostando ou não
gostando, disso ou daquilo, a cultura é viva, ela não morre, apesar de todos esses
pesares. Haja vista a própria Alemanha pós-nazista que, para se reerguer,
buscou nos livros e na educação, ampla e plural, a consolidação de seu
alicerce. E hoje, pouco mais de 70 anos depois, ela figura entre os países mais
industrializados e influentes do mundo.
O que me faz lembrar do prefácio
de “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, ao trazer a seguinte reflexão, “Enquanto, por efeito de leis e costumes,
houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros
infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza
divino; enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pelo
proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela
ignorância – não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a
asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda,
enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão
inúteis”.
Na verdade, nenhum livro é inútil.
Nenhuma cultura é inútil. Sem essa consciência advinda das leituras e dos
livros, o ser humano se torna limitado e cativo, um sujeito que está sujeito a
não escrever a própria história, a não compreender o sentido da própria
existência, a não enxergar a própria imagem refletida no espelho, a se tornar
apenas um espectro da vontade alheia, um fantoche preso as cordas de uma
debilidade ignorante, um ser morto antes de ter morrido.