terça-feira, 15 de junho de 2021

A Cultura em risco...


A Cultura em risco...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

De volta ao passado tenebroso dos tempos trevosos? Nas voltas que o mundo dá, lá está a história a repetir mais um quadro triste de perseguição à Cultura, ou mais precisamente, à Literatura. Em nome de um radicalismo ideológico, que limite a consciência pelos parâmetros da ignorância, as investidas têm sido desde a taxação com tributos mais robustos até o banimento e a negação de determinadas obras e autores.

Aliás, a mais recente cruzada ideológica, no sentido de invisibilizar diversos títulos, partiu da Fundação Cultural Palmares (FCP) 1, órgão ligado ao governo federal e “voltado à promoção e preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira” 2. Uma atitude que, antes de mais nada, contraria a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 216, parágrafo 1º, no que diz respeito aos princípios que regem o Sistema Nacional de Cultura e seu respectivo Plano Nacional.

O que significa, dentre outros aspectos, ferir a diversidade das expressões culturais, a universalização do acesso aos bens e serviços culturais, a transversalidade das políticas culturais, e a democratização dos processos decisórios com participação e controle social.

Há tempos não se via tamanho desrespeito em relação à cultura. Talvez, a manifestação mais emblemática contra os livros remonte dos tempos do nazismo, quando pilhas e pilhas deles foram queimadas em praças públicas, por serem considerados impróprios pelo Reich alemão.

Mas, o que é ser impróprio ou não, em termos culturais, quando a identidade cultural de um povo é formada pela diversidade e pluralidade de manifestações e conceitos? E os interesses culturais individuais só se formulam e constituem a partir da oportunidade de conhecer, de apreciar, de escolher por conta própria o que existe no mundo.  

Por isso, as bibliotecas tão bem traduzem essa compreensão. Ali estão os diversos tipos textuais - narração, argumentação, descrição, injunção e exposição -, caracterizados por propriedades linguísticas, como vocabulário, relações lógicas, tempos verbais, construções frasais etc.; bem como, os gêneros textuais, os quais possuem uma função comunicativa inserida em um contexto cultural, ou seja, livro de contos, crônicas, romances, didáticos, receitas e outros. Todos expressos na figura de textos que possuem um sentido e uma intenção comunicativa.

E cada obra é, por excelência, um recorte do tempo, a definição de uma época e de seus valores e costumes; assim como, a expressão, o olhar e o entendimento do autor. Daí a dimensão da riqueza que se traduz naquelas linhas e entrelinhas.

Talvez, por essa razão, é que eles incomodem tanto. Afinal, livros são livres. Foram das asas da imaginação, da criatividade, do talento e da observação que se extraíram as penas para que fossem escritas suas páginas.

De modo que todo esse processo tem que repercutir no leitor, como manifestou Gilberto Dimenstein, “Só existe opção quando se tem informação... ninguém pode dizer que é livre para tomar o sorvete que quiser se conhecer apenas o sabor limão”.

Não é à toa que os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais (2008), para Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, trazem a seguinte consideração: “[...]é na interação em diferentes instituições sociais (a família, o grupo de amigos, as comunidades de bairro, as igrejas, a escola, o trabalho, as associações, etc.) que o sujeito aprende as formas de funcionamento da língua e os modos de manifestação da linguagem; ao fazê-lo, vai construindo seus conhecimentos relativos aos usos da língua e da linguagem em diferentes situações. Também nessas instâncias sociais o sujeito constrói um conjunto de representações sobre o que são os sistemas semióticos, o que são as variações de uso da língua e da linguagem, bem como qual o seu valor social”.

Então, quando o próprio governo tolhe de maneira arbitrária a leitura, ele limita o cidadão de realizar essa construção de conhecimento a partir da pluralidade literária. Isso significa que ele não está simplesmente afrontando a cultura, no cerne da identidade cultural do país; mas, contribuindo para que este mantenha as suas posições constrangedoras no cenário mundial; seja na educação ou no mercado de trabalho.   

Afinal de contas, esses cidadãos têm seu letramento (ou multiletramentos) bastante inconsistentes e frágeis, para sobreviver na esteira da competitividade contemporânea.  Quando os alunos brasileiros são colocados sob avaliações nacionais e internacionais seu desempenho é considerado pífio.

Sobretudo, em relação à leitura, uma peça chave nos processos de construção do conhecimento. Porque é através dela que se expande as fronteiras cognitivas e intelectuais do ser humano. No entanto, uma maciça parcela dos alunos dispõe de uma prática de leitura muito aquém do necessário.

Independentemente das razões que justificam, ou pelo menos explicam, essa insuficiência, está o fato de que comparados aos alunos de outros países, os brasileiros frequentam muito menos as bibliotecas. Por aqui, esse hábito ainda é considerado incipiente, apesar de inúmeros e bons projetos de leitura promovidos pelas bibliotecas em todo o país.

Então, querer impor a filosofia do banimento e da negação de obras e autores, não muda o fato de que elas foram escritas, de que aquelas ideias foram pensadas, de que há quem concorde com elas, ...; mas, exerce subjetivamente uma influência de banimento e de negação da literatura na vida do cidadão. Invisibilizá-la. Torná-la cada vez mais inacessível. São instrumentos de desconstrução de valores culturais, especialmente, considerando as camadas menos privilegiadas da sociedade. Na verdade, o que se tenta com essas práticas é enviesar a Cultura, a fim de fazê-la atender aos interesses de quem está no poder.  

Contudo, gostando ou não gostando, disso ou daquilo, a cultura é viva, ela não morre, apesar de todos esses pesares. Haja vista a própria Alemanha pós-nazista que, para se reerguer, buscou nos livros e na educação, ampla e plural, a consolidação de seu alicerce. E hoje, pouco mais de 70 anos depois, ela figura entre os países mais industrializados e influentes do mundo.

O que me faz lembrar do prefácio de “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, ao trazer a seguinte reflexão, “Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância – não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis”.

Na verdade, nenhum livro é inútil. Nenhuma cultura é inútil. Sem essa consciência advinda das leituras e dos livros, o ser humano se torna limitado e cativo, um sujeito que está sujeito a não escrever a própria história, a não compreender o sentido da própria existência, a não enxergar a própria imagem refletida no espelho, a se tornar apenas um espectro da vontade alheia, um fantoche preso as cordas de uma debilidade ignorante, um ser morto antes de ter morrido.