Recortes...
Por Alessandra
Leles Rocha
Não dá para explicar um filme por uma cena. Como, também, não
dá para tecer considerações sobre um livro a partir de um único capítulo. Por mais
que se queira olhar para a contemporaneidade pela perspectiva de recortes, isso
é insuficiente para dar sustentação e credibilidade aos fatos. E a vida, caro
(a) leitor (a), é a junção de todos os acontecimentos. Bons, ruins, medianos. Talvez,
por essa insistência equivocada é que temos sido colocados diante de tanta incoerência
e desilusão.
Na tentativa de recortar demasiadamente a realidade, a fim de
fazê-la caber em certos propósitos pré-definidos, é que alguns dos depoentes na
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID-19, por exemplo, têm se
exposto a tantos absurdos vexatórios. Eles têm se permitido desconstruir
voluntariamente a própria credibilidade e dignidade, a um nível tão deplorável
que chega a ser inacreditável a possibilidade de tamanha desfaçatez.
O que, certamente, ajuda a explicar o tom elevado e exasperado
das sessões, por parte de alguns dos senadores, frente ao descompromisso dos
depoentes com a seriedade da situação. Afinal, pressupõe-se que cada depoente
ainda saiba discernir a realidade da ficção, a verdade da mentira.
Mas, não para por aí. Mais de 465 mil mortos pela COVID-19. Avisos
repetidos de que o país deve ser atingido por uma 3ª onda da Pandemia, ou, para
alguns especialistas, um recrudescimento mais acentuado das ondas anteriores,
que jamais chegaram a se estabilizar em patamares baixos. Mobilizações nos
aeroportos, portos e pontos de fronteira para tentar impedir a disseminação da
cepa oriunda da Índia. E o governo brasileiro, que deveria ser o espelho da boa
conduta, aceita a proposta da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol)
para sediar a Copa América, nos próximos dias.
Baseando-se em argumentos injustificáveis, os quais só cabem
nos recortes de uma realidade definida pelo Presidente da República, o Brasil
naturaliza o morticínio pandêmico e faz disso uma propaganda de muito mau
gosto. Primeiro, porque o panorama de vacinação contra a COVID-19 na América do
Sul, ainda, é muito incipiente. A lentidão com que as vacinas têm sido
disponibilizadas as populações é uma realidade difícil de ser alterada em um
prazo tão exíguo.
De modo que apenas algumas das delegações participantes foram
imunizadas com a 1ª dose, o que se torna insuficiente para a eficácia da
vacina. Outras, como o caso do Brasil, não foram e apenas os atletas que
disputam campeonatos na Europa já passaram pela imunização. Ou seja, não há uniformidade
suficiente para garantir segurança aos participantes.
Segundo, porque mesmo que fossem imunizadas antes do torneio,
não haveria prazo suficiente, conforme os protocolos das vacinas disponíveis,
para criar a imunidade necessária pelo organismo. Entre a 1ª e a 2ªdoses há um espaçamento
em torno de 15 dias e, após a 2ª dose, são necessários mais 15 dias. Assim, o
próprio calendário imposto pela Conmebol tornou-se inadequado as medidas
sanitárias de prevenção.
Por fim, o argumento de que outros eventos desportivos vêm
ocorrendo sem problemas é equivocado. Várias equipes têm enfrentado
dificuldades de escalação, por conta de jogadores e comissão técnica contaminados
pela COVID-19. Ontem mesmo, o jogador chileno Arturo Vidal foi hospitalizado em
decorrência do vírus e irá se ausentar de alguns jogos das eliminatórias para a
Copa do Mundo. A verdade é que não há como se estabelecer um protocolo de
segurança sanitária suficiente para impedir a contaminação e a disseminação da
doença; sobretudo, quando o vírus está em franca circulação no ambiente.
E assim tem sido em todos os campos da vida cotidiana
brasileira. Recortes para mascarar os números da economia e torná-los menos
indigestos aos cidadãos. Recortes sobre o alcance e os prejuízos dos
desmatamentos e ações depredatórias na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado. Recortes
para mitigar o desmoronamento do ensino público nacional, a partir da escassez
de recursos que inviabilizam a sua manutenção satisfatória. Recortes...
Recortes... Recortes... os quais, no fundo, não passam de nuvens de fumaça que cumprem
o papel de dificultar uma compreensão mais clara e precisa da realidade dos
fatos pelo cidadão comum.
O ponto chave de todo esse movimento de fragmentação é que o
governo sabe que não pode negar os problemas, os desafios, os obstáculos;
então, ao contrário de resolvê-los de maneira equilibrada e consistente, ele estabelece
a sua própria verdade paralela. Assim,
ao criar um mundo que só existe na sua perspectiva, ele se torna totalmente refratário
a lógica e ao bom senso vigentes. E só obtém algum êxito, mesmo que efêmero,
porque encontra pessoas dispostas a colaborar com seus recortes.
Mesmo cientes
da irrealidade, o que leva essas pessoas
a se unirem ao poder, decorre tanto do desejo de um participar coletivo, quanto
pela compensação de interesses diversos, ou simplesmente, pela junção de ambos.
Afinal, os grandes poderes têm uma tendência natural de impor aos demais
atitudes de admiração, fascínio, respeito e temor, constituindo uma
manifestação de hierarquização, costumeiramente difícil de ser rompida. Por
isso, não se importam se os recortes traduzem ou não alguma ideia válida. Eles
são apenas um meio e não um fim.
Assim, de recorte em recorte a
sociedade vai ficando aos pedaços, disforme, irreconhecível, como se nada mais fizesse
sentido com nada. Perde a voz. Perde a vez. Perde o rumo. Perde a identidade,
porque não sabe mais como é ser o todo, o país que lhe permitiria, segundo as conjunturas,
promover escolhas, adaptar-se, lançar-se a novas reformulações. A incompletude
dos recortes é maior do que a incompletude que sustenta a beleza da
grandiosidade nacional, porque quando passa a ser fragmento deixa de se conectar
a tudo o que é fundamental, a sua essência.