quinta-feira, 17 de junho de 2021

Pior do que a miséria do corpo é a miséria da alma


Pior do que a miséria do corpo é a miséria da alma

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É no mínimo equivocada a ideia de que se possa resolver o problema da fome no Brasil a partir de raspas e restos ou da distribuição de alimentos com data vencida. Para início de conversa, a cidadania não está vinculada à renda do indivíduo, todos são brasileiros e brasileiras merecem respeito.

Embora, muitos não tenham como se alimentar qualitativa e quantitativamente para suprir as necessidades humanas básicas, não nos esqueçamos de que basta existir para sermos pagadores de impostos e tributos. E desse dinheiro parco e suado, nunca vi nenhuma autoridade desdenhar.

Pois bem, o retrato da miséria que assola o país e se exibe na desgraça das barrigas e dos pratos vazios deve começar a ser combatida pelas frentes adequadas.

O país perde anualmente toneladas de grãos, no percurso das estradas malconservadas que levam tais produtos das regiões agrícolas, para os pontos de armazenamento e distribuição. De modo que, apesar das “super safras” conquistadas, o Brasil se permite um desperdício que poderia colaborar no combate à miséria e a desnutrição de sua gente.

Do mesmo modo, também, são desperdiçadas toneladas de hortaliças, legumes e frutas nos entrepostos comerciais, atacadistas, hiper e supermercados, e feiras livres.

Por serem produtos bastante perecíveis, a sua durabilidade prejudica a imagem e os torna menos atraentes para o consumidor. Folhas amareladas. Amassados. Pequenas brocas. Tamanho irregular. Enfim...

No entanto, apesar da aparência, muitos podem ser consumidos dentro de um espaço de tempo que não comprometa a saúde humana, conforme descrito pelas ciências da nutrição. 

Tanto que, diante da carestia, muita gente aguarda pela xepa nas feiras livres, quando os alimentos têm uma redução considerável no valor. Chegando em casa, as pessoas descartam as partes “feias”, aproveitando o que está em perfeito estado para consumo.

Alguns municípios, inclusive, já dispõem de projetos de parceria com o setor de alimentação para triar a xepa e encaminhá-la às instituições que oferecem refeição à população mais vulnerável.

Mas, mesmo assim, dado o expressivo volume e o desconhecimento de grande parte da sociedade a respeito do reaproveitamento dos alimentos, muitos ainda acabam sendo descartados e encaminhados aos aterros sanitários.

Aliás, é o que ocorre, também, com grande parte dos alimentos já processados oriundos de residências, restaurantes, bares, lanchonetes e afins. Apesar dos esforços de organizar as refeições dentro de um limite de desperdício mínimo, sempre haverá descarte de alimentos em razão de normas sanitárias.

Por mais esforços para garantir a salubridade e higiene dos ambientes, surtos de contaminação por vírus, bactérias e fungos podem acontecer em qualquer local. Basta alguém contaminado, mesmo sem saber, para que o estrago esteja feito.

Bastam gotículas dispersas no ar, ou sobre os utensílios, ou sobre a própria comida, para que as pessoas entrem em contato com algum desses agentes infecciosos. Quem nunca passou pela terrível experiência de uma intoxicação alimentar?

É por isso que o reaproveitamento desse tipo de alimento é tão questionado pela Vigilância Sanitária; porque quem faz a distribuição de comida já processada assume um risco eventual incalculável.

Enquanto os pratos parecem bonitos e apetitosos aos olhos de quem quer consumi-los, uma multiplicação desordenada de microorganismos, totalmente invisíveis, ocorre sem a nossa percepção.

Outro aspecto a ser abordado são as hortas comunitárias. De pequenos a grandes centros urbanos, muitas iniciativas nesse sentido têm sido colocadas em prática e obtido um sucesso extraordinário entre a população.

Praças, terrenos baldios, espaços inertes, tudo se transforma em opção para dar vida a uma bela horta e oportunizar qualidade e segurança alimentar para diversas pessoas.

Mas, como seria bom, se as instituições de ensino e prisionais também constituíssem projetos de hortas nos seus próprios espaços para melhorar a alimentação oferecida. Sei, que algumas delas fazem parcerias com os pequenos produtores rurais, o que é muito importante, também.

Contudo, a construção de hortas vai além da nutrição do corpo porque contribui para a criação de uma consciência socioambientalmente responsável. A partir de inúmeras reflexões e aprendizados estabelecidos por esse movimento do plantar, produzir, colher, compartilhar, ... o ser humano passa a desempenhar um efeito multiplicador importantíssimo na sociedade.

Diante de todas essas considerações, então, não posso deixar de concordar com Mahatma Gandhi, quando ele disse que “Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não haveria pobreza no mundo e ninguém morreria de fome”.

O que significa que não precisamos condenar ninguém a indignidade da mendicância. A humanidade já evoluiu o bastante para utilizar de inteligência, bom senso e conhecimentos para traçar estratégias de sobrevivência sustentáveis. Por isso, pior do que a miséria do corpo é a miséria da alma.


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