Pior
do que a miséria do corpo é a miséria da alma
Por
Alessandra Leles Rocha
É no mínimo equivocada a ideia de
que se possa resolver o problema da fome no Brasil a partir de raspas e restos
ou da distribuição de alimentos com data vencida. Para início de conversa, a
cidadania não está vinculada à renda do indivíduo, todos são brasileiros e brasileiras
merecem respeito.
Embora, muitos não tenham como se
alimentar qualitativa e quantitativamente para suprir as necessidades humanas
básicas, não nos esqueçamos de que basta existir para sermos pagadores de
impostos e tributos. E desse dinheiro parco e suado, nunca vi nenhuma
autoridade desdenhar.
Pois bem, o retrato da miséria que
assola o país e se exibe na desgraça das barrigas e dos pratos vazios deve
começar a ser combatida pelas frentes adequadas.
O país perde anualmente toneladas
de grãos, no percurso das estradas malconservadas que levam tais produtos das
regiões agrícolas, para os pontos de armazenamento e distribuição. De modo que,
apesar das “super safras” conquistadas, o Brasil se permite um desperdício que
poderia colaborar no combate à miséria e a desnutrição de sua gente.
Do mesmo modo, também, são desperdiçadas
toneladas de hortaliças, legumes e frutas nos entrepostos comerciais,
atacadistas, hiper e supermercados, e feiras livres.
Por serem produtos bastante perecíveis,
a sua durabilidade prejudica a imagem e os torna menos atraentes para o
consumidor. Folhas amareladas. Amassados. Pequenas brocas. Tamanho irregular. Enfim...
No entanto, apesar da aparência,
muitos podem ser consumidos dentro de um espaço de tempo que não comprometa a
saúde humana, conforme descrito pelas ciências da
nutrição.
Tanto que, diante da carestia, muita
gente aguarda pela xepa nas feiras livres, quando os alimentos têm uma redução
considerável no valor. Chegando em casa, as pessoas descartam as partes “feias”,
aproveitando o que está em perfeito estado para consumo.
Alguns municípios, inclusive, já dispõem
de projetos de parceria com o setor de alimentação para triar a xepa e
encaminhá-la às instituições que oferecem refeição à população mais vulnerável.
Mas, mesmo assim, dado o expressivo
volume e o desconhecimento de grande parte da sociedade a respeito do reaproveitamento
dos alimentos, muitos ainda acabam sendo descartados e encaminhados aos aterros
sanitários.
Aliás, é o que ocorre, também, com
grande parte dos alimentos já processados oriundos de residências,
restaurantes, bares, lanchonetes e afins. Apesar dos esforços de organizar as refeições
dentro de um limite de desperdício mínimo, sempre haverá descarte de alimentos
em razão de normas sanitárias.
Por mais esforços para garantir a
salubridade e higiene dos ambientes, surtos de contaminação por vírus, bactérias
e fungos podem acontecer em qualquer local. Basta alguém contaminado, mesmo sem
saber, para que o estrago esteja feito.
Bastam gotículas dispersas no ar,
ou sobre os utensílios, ou sobre a própria comida, para que as pessoas entrem
em contato com algum desses agentes infecciosos. Quem nunca passou pela terrível
experiência de uma intoxicação alimentar?
É por isso que o reaproveitamento
desse tipo de alimento é tão questionado pela Vigilância Sanitária; porque quem
faz a distribuição de comida já processada assume um risco eventual
incalculável.
Enquanto os pratos parecem
bonitos e apetitosos aos olhos de quem quer consumi-los, uma multiplicação desordenada
de microorganismos, totalmente invisíveis, ocorre sem a nossa percepção.
Outro aspecto a ser abordado são
as hortas comunitárias. De pequenos a grandes centros urbanos, muitas
iniciativas nesse sentido têm sido colocadas em prática e obtido um sucesso extraordinário
entre a população.
Praças, terrenos baldios, espaços
inertes, tudo se transforma em opção para dar vida a uma bela horta e oportunizar
qualidade e segurança alimentar para diversas pessoas.
Mas, como seria bom, se as
instituições de ensino e prisionais também constituíssem projetos de hortas nos
seus próprios espaços para melhorar a alimentação oferecida. Sei, que algumas
delas fazem parcerias com os pequenos produtores rurais, o que é muito
importante, também.
Contudo, a construção de hortas
vai além da nutrição do corpo porque contribui para a criação de uma consciência
socioambientalmente responsável. A partir de inúmeras reflexões e aprendizados
estabelecidos por esse movimento do plantar, produzir, colher, compartilhar,
... o ser humano passa a desempenhar um efeito multiplicador importantíssimo na
sociedade.
Diante de todas essas
considerações, então, não posso deixar de concordar com Mahatma Gandhi, quando
ele disse que “Cada dia a natureza produz
o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse
necessário, não haveria pobreza no mundo e ninguém morreria de fome”.
O que significa que não
precisamos condenar ninguém a indignidade da mendicância. A humanidade já
evoluiu o bastante para utilizar de inteligência, bom senso e conhecimentos
para traçar estratégias de sobrevivência sustentáveis. Por isso, pior do que a miséria
do corpo é a miséria da alma.