A
narrativa da desfaçatez
Por
Alessandra Leles Rocha
O
transcorrer dos depoimentos à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a
COVID-19 tem conseguido despertar um verdadeiro “cansaço moral”. Não
é possível que meros malabarismos linguísticos sejam capazes de desconstruir
fatos, tão materializados, ao longo de pouco mais de um ano de Pandemia, no
país, como querem fazer alguns depoentes.
Fica claro,
como o país tem se permitido viver sob o parâmetro de que as narrativas não
precisam dialogar com as práticas. Sim, porque é exatamente isso que tem se
evidenciado no cotidiano brasileiro; sobretudo, no campo político. No “faça
o que eu falo; mas, não faça o que eu faço”, o país já presenciou os “fura-filas” de
vacinas, as aglomerações promovidas por autoridades que deliberaram pelo
isolamento social, os hospitais de campanha que não saíram do discurso,
enfim...
De modo que
esse movimento desconexo fomenta uma total perda de credibilidade, por parte de
quem representa alguma das esferas de poder; mas, também, em relação à
gravidade da conjuntura atual. As mensagens transmitidas estão gerando sérios
problemas de decodificação e, por isso, passam longe da sua capacidade de
informar e orientar satisfatoriamente a população, fazendo-a se sentir menos
segura e amparada.
Aliás, como
tenho reiterado inúmeras vezes sobre o ranço colonial que persiste no país, ele
é o responsável por milhares de pessoas, ainda, depositarem nos seus
representantes políticos um grau de autoridade e simbolismo tão expressivo, que
faz de seus discursos determinações a serem seguidas sem contestação ou, quem
sabe, alguma reflexão.
Então,
quando pegos no desalinhamento entre a fala e a ação, as retratações parecem
insuficientes para dar conta dos prejuízos desencadeados. Porque as imagens, os
registros, os documentos, dizem mais do que quaisquer justificativas ou
desculpas de improviso. Afinal, não podemos nos esquecer que a comunicação
contemporânea tem se constituído fundamentalmente nessa interpretação do
cotidiano a partir dos signos sociais que representam significado e /ou sentido
para o ser humano.
A verdade é
que essa não é uma questão desimportante, como algumas pessoas querem fazer
transparecer. Essa história de que vivemos no tempo da pressa, do imediatismo,
não cola. Ainda que a vida venha sendo analisada e comentada sob a ótica dos
recortes, se estes forem muito díspares para delinear as personagens, é inevitável
que questionamentos sobre essas venham a emergir.
Não dá para
ser como folha de bananeira ao sabor dos ventos; pende para um lado, pende para
outro... Porque esse tipo de perfil transmite uma sensação de total
instabilidade, como se a pessoa não se apropriasse de sua consciência sobre o
que pensa, o que quer, o que faz, ... Cada hora é impulsionada a uma direção e
sentido diferentes.
Veja, por
exemplo, o resultado recente das eleições para a Assembleia Nacional
Constituinte, no Chile, em que os candidatos independentes representaram 64%
dos eleitos e evidenciaram uma crise de representatividade dos partidos
tradicionais, decorrente, em grande parte, desse “desalinhamento discursivo”.
Ora, a vida
é demasiadamente complexa para um trânsito tão displicente assim.
Especialmente, quando, de livre e espontânea vontade, o indivíduo se dispõe a
assumir funções e responsabilidades, as quais podem afetar diretamente o
coletivo. Nesses casos, o equilíbrio, o foco, a lisura e a coerência são
princípios fundamentais, que não podem ser negociados sob nenhum pretexto.
Não dá para
responder a um problema de uma maneira, pela manhã, e de outra, à tarde. Quem
almeja por uma resposta quer que ela seja satisfatória. Toda narrativa tem
início, meio e fim. Subverter essa ordem, nunca dá certo. As conexões se
perdem. Os fios ficam soltos. E o fim, como bem sabemos, não justifica os
meios. A credibilidade perpassa diretamente pelo sentido que aquilo nos traz,
ou seja, são argumentos pessoais que manifestamos ao nosso próprio íntimo. Se
eles não existem, a crença se esfacela e é substituída pela frustração, pela
decepção.
Em suma, não
posso deixar de recordar a citação de George Orwell de que “A linguagem
política, destina-se a fazer com que a mentira soe como verdade e o crime se
torne respeitável, bem como imprimir ao vento uma aparência de solidez”1. Afinal,
talvez seja exatamente isso que, ao nível do inconsciente, nos faça manifestar
tamanho cansaço diante da desfaçatez explícita presente nessa CPI.
Porque,
embora as perspectivas em relação à Pandemia possam ser individualizadas, o
contexto geral é uma realidade comum a todos. Tendo em vista de que os fatos
são públicos e vêm sendo, então, esmiuçados desde o início, o vexatório
autoconfronto das narrativas pelos depoentes torna-se algo deplorável. Ao
tentarem reescrever a história, segundo seus volúveis interesses pessoais, eles
se apequenam diante dos acontecimentos e agigantam as consequências terríveis
da Pandemia.
1 ORWELL, G. Politics and the English Language. A collection of Essays. Nova York: Doubledav, 1954.