quinta-feira, 20 de maio de 2021

A narrativa da desfaçatez


A narrativa da desfaçatez

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O transcorrer dos depoimentos à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a COVID-19 tem conseguido despertar um verdadeiro “cansaço moral”. Não é possível que meros malabarismos linguísticos sejam capazes de desconstruir fatos, tão materializados, ao longo de pouco mais de um ano de Pandemia, no país, como querem fazer alguns depoentes.

Fica claro, como o país tem se permitido viver sob o parâmetro de que as narrativas não precisam dialogar com as práticas. Sim, porque é exatamente isso que tem se evidenciado no cotidiano brasileiro; sobretudo, no campo político. No “faça o que eu falo; mas, não faça o que eu faço”, o país já presenciou os “fura-filas” de vacinas, as aglomerações promovidas por autoridades que deliberaram pelo isolamento social, os hospitais de campanha que não saíram do discurso, enfim...

De modo que esse movimento desconexo fomenta uma total perda de credibilidade, por parte de quem representa alguma das esferas de poder; mas, também, em relação à gravidade da conjuntura atual. As mensagens transmitidas estão gerando sérios problemas de decodificação e, por isso, passam longe da sua capacidade de informar e orientar satisfatoriamente a população, fazendo-a se sentir menos segura e amparada.

Aliás, como tenho reiterado inúmeras vezes sobre o ranço colonial que persiste no país, ele é o responsável por milhares de pessoas, ainda, depositarem nos seus representantes políticos um grau de autoridade e simbolismo tão expressivo, que faz de seus discursos determinações a serem seguidas sem contestação ou, quem sabe, alguma reflexão.

Então, quando pegos no desalinhamento entre a fala e a ação, as retratações parecem insuficientes para dar conta dos prejuízos desencadeados. Porque as imagens, os registros, os documentos, dizem mais do que quaisquer justificativas ou desculpas de improviso. Afinal, não podemos nos esquecer que a comunicação contemporânea tem se constituído fundamentalmente nessa interpretação do cotidiano a partir dos signos sociais que representam significado e /ou sentido para o ser humano.

A verdade é que essa não é uma questão desimportante, como algumas pessoas querem fazer transparecer. Essa história de que vivemos no tempo da pressa, do imediatismo, não cola. Ainda que a vida venha sendo analisada e comentada sob a ótica dos recortes, se estes forem muito díspares para delinear as personagens, é inevitável que questionamentos sobre essas venham a emergir.

Não dá para ser como folha de bananeira ao sabor dos ventos; pende para um lado, pende para outro... Porque esse tipo de perfil transmite uma sensação de total instabilidade, como se a pessoa não se apropriasse de sua consciência sobre o que pensa, o que quer, o que faz, ... Cada hora é impulsionada a uma direção e sentido diferentes.

Veja, por exemplo, o resultado recente das eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, no Chile, em que os candidatos independentes representaram 64% dos eleitos e evidenciaram uma crise de representatividade dos partidos tradicionais, decorrente, em grande parte, desse “desalinhamento discursivo”.    

Ora, a vida é demasiadamente complexa para um trânsito tão displicente assim. Especialmente, quando, de livre e espontânea vontade, o indivíduo se dispõe a assumir funções e responsabilidades, as quais podem afetar diretamente o coletivo. Nesses casos, o equilíbrio, o foco, a lisura e a coerência são princípios fundamentais, que não podem ser negociados sob nenhum pretexto.

Não dá para responder a um problema de uma maneira, pela manhã, e de outra, à tarde. Quem almeja por uma resposta quer que ela seja satisfatória. Toda narrativa tem início, meio e fim. Subverter essa ordem, nunca dá certo. As conexões se perdem. Os fios ficam soltos. E o fim, como bem sabemos, não justifica os meios. A credibilidade perpassa diretamente pelo sentido que aquilo nos traz, ou seja, são argumentos pessoais que manifestamos ao nosso próprio íntimo. Se eles não existem, a crença se esfacela e é substituída pela frustração, pela decepção.

Em suma, não posso deixar de recordar a citação de George Orwell de que “A linguagem política, destina-se a fazer com que a mentira soe como verdade e o crime se torne respeitável, bem como imprimir ao vento uma aparência de solidez”1Afinal, talvez seja exatamente isso que, ao nível do inconsciente, nos faça manifestar tamanho cansaço diante da desfaçatez explícita presente nessa CPI.

Porque, embora as perspectivas em relação à Pandemia possam ser individualizadas, o contexto geral é uma realidade comum a todos. Tendo em vista de que os fatos são públicos e vêm sendo, então, esmiuçados desde o início, o vexatório autoconfronto das narrativas pelos depoentes torna-se algo deplorável. Ao tentarem reescrever a história, segundo seus volúveis interesses pessoais, eles se apequenam diante dos acontecimentos e agigantam as consequências terríveis da Pandemia.



1 ORWELL, G. Politics and the English Language. A collection of Essays. Nova York: Doubledav, 1954.