Viva a
diferença!!!
Por Alessandra
Leles Rocha
Enquanto o Sars-Cov-2 age de forma democrática
e sem preconceitos, o Brasil vai na contramão e permanece exibindo o seu leque
de tiranias e antipatias amiúde. Um verdadeiro festival de desrespeito e
anticidadania, sob o apego de crenças e valores nocivos à dignidade humana.
Ora, se não deu para perceber, temos questões de vida e morte urgindo entre nós
e, por isso, não precisamos fomentar conflitos e deselegâncias. Aliás, nessas
alturas do campeonato, quem é mesmo o Brasil na fila do pão? Ameaça global.
Tendo em vista que “recordar é viver”, nossos
mais de 500 anos de história não podem ser lançados para debaixo do tapete. Somos
ex-colônia de uma Metrópole europeia. Fomos
explorados até a última pepita de ouro. O último corte de Pau-brasil. A última
saca de açúcar mascavo. Tratados como gente de segunda linha. Tidos como ignorantes.
Puxa-sacos ávidos por um agrado da Corte. Mas, parece que não aprendemos nada
com essa experiência. Porque criamos uma pseudodignidade que se fez de armadura
para “pagar na mesma moeda” contra
quem julgássemos inferiores; embora, nada tivessem atentado contra nós.
Nos tornamos indecentemente cruéis e perversos
nas relações humanas com os negros, os mestiços, os indígenas e quaisquer
outros que não ostentassem o pedigree dos “bem-nascidos”
no “primeiro mundo”. De modo que
qualquer detalhe na imagem ou no comportamento se transformou em pretexto de
humilhação, de ridicularização, de ofensa, de violências diversas. Já que a
regra de balizamento para ser “gente de
respeito” era o padrão caucasiano europeu. O resto era resto.
Talvez esteja aí uma importante semente dos
nossos males sociais, as aparências. Digo isso, porque o país nunca foi muito
afeito a se preocupar com a índole, a disposição, o comportamento e os princípios
de sua gente. Haja vista, a personagem clássica de Mário de Andrade, o
Macunaíma, o anti-herói sem caráter. Por aqui, na base do “vale quanto pesa” as pessoas vão sendo conduzidas aos estratos da
sociedade. Daí a existência de tantos “lobos
em peles de cordeiro”.
Mas, ainda que as coisas transitem dessa
maneira, há seres humanos cuja desqualificação parece mesmo marcada a ferro. Nada
parece demover ou desconstruir a aversão que uns e outros dispensam em relação
a eles. Ao ponto de, vez por outra, exacerbarem pelas narrativas e discursos
uma verborragia abjeta, uma tecitura de considerações disformes e desumanas.
Então, me pergunto se alguma vez já se olharam
no espelho? Pois é, nenhum ser humano saiu de uma linha de produção em série.
O mundo é um lugar plural. Diferenças estão
por todos os lados, para marcar a necessidade que reside na diversidade. Por isso
ninguém pode se considerar melhor do que o outro. Em entrevista ao jornal
espanhol El Mundo, em 1998, José Saramago disse que “o problema não está em sermos diferentes. Está em que, quando falamos
de diferença, de diferentes, estamos involuntariamente a introduzir um outro
conceito, o conceito de superior e de inferior. É aí que as coisas se complicam”.
Isso me faz lembrar, também, a seguinte citação
do filme Coração de Cavaleiro (A Knight’s Tale) 1,
de 2001, “Você foi pesado, medido e considerado
insuficiente”. Essa é uma maneira interessante de reflexão sobre essas
questões. Aqui e ali, os seres humanos sempre colocam senões para obstaculizar,
invisibilizar, depreciar, ofender, ... seus pares, quando lhes interessa por
alguma razão. Portanto, o mesmo que aponta será apontado. É a lei básica do
retorno. Porque ninguém está a salvo dessa prática odiosa.
É uma pena que as pessoas sejam imediatistas e
se esqueçam de que o amanhã sempre vem. Você pode precisar de uma transfusão de
sangue, de um transplante, de um auxílio qualquer, e o responsável em lhe
servir esteja dentro daquele estereótipo que você sempre desprezou. E aí, o que
vai fazer? Determinadas ideologias e convicções podem lhe surpreender cobrando
um preço bastante alto. Afinal, a vida dá voltas dentro de uma
imprevisibilidade total. Não há como se ter controle sobre tudo.
Já passou da hora de olharmos para as pessoas,
simplesmente, como seres humanos. É preciso abolir os rótulos, as convenções,
porque eles só fazem estimular e dissipar o ódio, a desagregação e a violência.
O grande professor e Geógrafo Milton Santos já dizia, “a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando
apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une”. Porque essas
questões elevam o peso das tensões sobre o mundo e fazem a sociedade dispensar
um tempo e uma energia que poderiam estar sendo empregadas para fins mais produtivos
e urgentes.
Façamos, portanto, como os franceses, “Viva a diferença!
” (Vive la différence!). Precisamos pensar sobre isso. Falar sobre isso. Até que
seja possível construir um consenso com base na compreensão de que “o que fez a espécie humana sobreviver não
foi apenas a inteligência, mas a nossa capacidade de produzir diversidade. Essa
diversidade está sendo negada nos dias de hoje por um sistema que escolhe
apenas por razões de lucro e facilidade de sucesso” (Mia Couto – E se Obama
fosse Africano? E outras interinvenções).