terça-feira, 6 de abril de 2021

Viva a diferença!!!


Viva a diferença!!!

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Enquanto o Sars-Cov-2 age de forma democrática e sem preconceitos, o Brasil vai na contramão e permanece exibindo o seu leque de tiranias e antipatias amiúde. Um verdadeiro festival de desrespeito e anticidadania, sob o apego de crenças e valores nocivos à dignidade humana. Ora, se não deu para perceber, temos questões de vida e morte urgindo entre nós e, por isso, não precisamos fomentar conflitos e deselegâncias. Aliás, nessas alturas do campeonato, quem é mesmo o Brasil na fila do pão? Ameaça global.

Tendo em vista que “recordar é viver”, nossos mais de 500 anos de história não podem ser lançados para debaixo do tapete. Somos ex-colônia de uma Metrópole europeia.  Fomos explorados até a última pepita de ouro. O último corte de Pau-brasil. A última saca de açúcar mascavo. Tratados como gente de segunda linha. Tidos como ignorantes. Puxa-sacos ávidos por um agrado da Corte. Mas, parece que não aprendemos nada com essa experiência. Porque criamos uma pseudodignidade que se fez de armadura para “pagar na mesma moeda” contra quem julgássemos inferiores; embora, nada tivessem atentado contra nós.

Nos tornamos indecentemente cruéis e perversos nas relações humanas com os negros, os mestiços, os indígenas e quaisquer outros que não ostentassem o pedigree dos “bem-nascidos” no “primeiro mundo”. De modo que qualquer detalhe na imagem ou no comportamento se transformou em pretexto de humilhação, de ridicularização, de ofensa, de violências diversas. Já que a regra de balizamento para ser “gente de respeito” era o padrão caucasiano europeu. O resto era resto.

Talvez esteja aí uma importante semente dos nossos males sociais, as aparências. Digo isso, porque o país nunca foi muito afeito a se preocupar com a índole, a disposição, o comportamento e os princípios de sua gente. Haja vista, a personagem clássica de Mário de Andrade, o Macunaíma, o anti-herói sem caráter. Por aqui, na base do “vale quanto pesa” as pessoas vão sendo conduzidas aos estratos da sociedade. Daí a existência de tantos “lobos em peles de cordeiro”.

Mas, ainda que as coisas transitem dessa maneira, há seres humanos cuja desqualificação parece mesmo marcada a ferro. Nada parece demover ou desconstruir a aversão que uns e outros dispensam em relação a eles. Ao ponto de, vez por outra, exacerbarem pelas narrativas e discursos uma verborragia abjeta, uma tecitura de considerações disformes e desumanas.

Então, me pergunto se alguma vez já se olharam no espelho? Pois é, nenhum ser humano saiu de uma linha de produção em série.

O mundo é um lugar plural. Diferenças estão por todos os lados, para marcar a necessidade que reside na diversidade. Por isso ninguém pode se considerar melhor do que o outro. Em entrevista ao jornal espanhol El Mundo, em 1998, José Saramago disse que “o problema não está em sermos diferentes. Está em que, quando falamos de diferença, de diferentes, estamos involuntariamente a introduzir um outro conceito, o conceito de superior e de inferior. É aí que as coisas se complicam”.

Isso me faz lembrar, também, a seguinte citação do filme Coração de Cavaleiro (A Knight’s Tale) 1, de 2001, “Você foi pesado, medido e considerado insuficiente”. Essa é uma maneira interessante de reflexão sobre essas questões. Aqui e ali, os seres humanos sempre colocam senões para obstaculizar, invisibilizar, depreciar, ofender, ... seus pares, quando lhes interessa por alguma razão. Portanto, o mesmo que aponta será apontado. É a lei básica do retorno. Porque ninguém está a salvo dessa prática odiosa.

É uma pena que as pessoas sejam imediatistas e se esqueçam de que o amanhã sempre vem. Você pode precisar de uma transfusão de sangue, de um transplante, de um auxílio qualquer, e o responsável em lhe servir esteja dentro daquele estereótipo que você sempre desprezou. E aí, o que vai fazer? Determinadas ideologias e convicções podem lhe surpreender cobrando um preço bastante alto. Afinal, a vida dá voltas dentro de uma imprevisibilidade total. Não há como se ter controle sobre tudo.

Já passou da hora de olharmos para as pessoas, simplesmente, como seres humanos. É preciso abolir os rótulos, as convenções, porque eles só fazem estimular e dissipar o ódio, a desagregação e a violência. O grande professor e Geógrafo Milton Santos já dizia, “a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une”. Porque essas questões elevam o peso das tensões sobre o mundo e fazem a sociedade dispensar um tempo e uma energia que poderiam estar sendo empregadas para fins mais produtivos e urgentes.

Façamos, portanto, como os franceses, “Viva a diferença! ” (Vive la différence!). Precisamos pensar sobre isso. Falar sobre isso. Até que seja possível construir um consenso com base na compreensão de que “o que fez a espécie humana sobreviver não foi apenas a inteligência, mas a nossa capacidade de produzir diversidade. Essa diversidade está sendo negada nos dias de hoje por um sistema que escolhe apenas por razões de lucro e facilidade de sucesso” (Mia Couto – E se Obama fosse Africano? E outras interinvenções).

Em suma, isso quer dizer que precisamos reaprender a arte do respeito. Por si. Pelo outro. Pelo mundo. Pela vida. Para que não seja mais preciso repetir o óbvio, ou seja, “não me mostrem o que esperam de mim, porque vou seguir meu coração. Não me façam ser quem não sou. Não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente. [...] Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma para sempre [...]” (Clarice Lispector).