300...
300 mil
Por
Alessandra Leles Rocha
Ao que tudo indica, 300 é o
número da vergonha nacional. 300... 300 mil. Sempre cercados por uma afrontosa vigília
de velas. Dessa vez, são 300 mil... mortos pelo Sars-COV-2. Anônimos. Famosos.
Cidadãos brasileiros que perderam a vida por conta dos descaminhos do seu país.
Infelizmente, o Brasil não parece preocupado em perder talentos, conhecimentos,
mãos para todas as obras. Só que o tempo não é generoso, não espera. Muito
menos, o novo vírus.
Enquanto figuração para
fotografia, aceno midiático aos que possam se interessar, a reunião de hoje
cumpriu o papel. Mas, depois de um ano inteiro patinando entre idas e vindas,
ter que ouvir a informação de que será necessário aguardar pela formação de uma
equipe para saber como lidar com os desafios é profundamente desalentador. Afinal, são 300 mil a menos na conta da
população brasileira. Sem contar todos os que estão à mercê da sorte para não
cerrar fileira nessa estatística funesta.
Ora, não há o que possa
tranquilizar a população nesse momento. A resistência contra as medidas
sanitárias profiláticas é absurdamente real. Pessoas estão chegando ao ponto de
matar os outros para satisfazer seu pseudodireito de descumprir orientações
simples como o uso de máscaras, o distanciamento social, a higienização
frequente das mãos com água e sabão ou álcool em gel. Assim como, a
insuficiência de vacinas e a lentidão no ritmo da imunização.
Porque o amadorismo que se tem
experimentado é demasiadamente constrangedor, especialmente, pelo fato de não
caber na realidade vacinal do país. Celeiro de grandes centros de pesquisa
médica e produção de imunobiológicos, o Brasil se permitiu declinar desse
protagonismo interno para se submeter a dinâmica das relações comerciais
internacionais; inclusive, abdicando de emanar esforços conjuntos a outros
países em favor da quebra de patentes das vacinas desenvolvidas para o combate
dessa Pandemia.
Não, não é à toa que 300 mil
chocam, humilham, diminuem a expressão da nossa cidadania. Porque as vidas
perdidas contam bem mais do que suas próprias histórias. Elas são um espelho o
qual não se pode fugir do reflexo. Cada um desses seres humanos é a tradução
exata do que foi ou não feito para evitar o seu trágico fim. Oxigênio? Remédios
para intubação? Leito em Unidade de Terapia Intensiva (UTI)? Vacina em tempo
hábil? Quaisquer que sejam as razões, no fim das contas, não importa. Motivos
podem explicar; mas, jamais justificar. Talvez, por isso mesmo, seu próprio
silêncio grita tão alto e repetidas vezes.
É; 300 mil não é um número que se
possa esquecer fácil, da noite para o dia. A Pandemia desconstruiu a ideia de
que as perdas humanas tendem a se depositar em camadas frias de números esquecíveis.
A brutalidade dos acontecimentos é tamanha que a morte revive a cada minuto dentro
de nós. Ela se perpetua na monstruosidade da inação, da incompetência, da falta
de habilidade para conter a fúria desse inimigo invisível. De modo que, talvez,
não tarde esses números avançarem rapidamente.
Mesmo assim, quando pensarmos
sobre esse número que conseguiu marcar a história nacional por vieses tão impactantes,
que sejamos capazes de uma reflexão profunda a respeito de que “considerando que viver é artimanha que se
cultiva entre aquilo que se enxerga e aquilo que mora no invisível, seguimos o
rastro da flecha que atravessa o tempo: o contrário da vida não é a morte, o
contrário da vida é o desencanto. Para os saberes que margeiam essa terra e
sopram ar, hálito e palavras de força para afugentar o espectro colonial, vida
e morte transbordam os limites de uma compreensão meramente fisiológica para se
inscrever em outras dimensões. Assim, cabe falarmos em mortandade e vivacidade,
considerando que a primeira é um estado de desencanto da vida, e a segunda é a experiência
do ser integral e integrado como a natureza, mesmo que eventualmente tenha
morrido” (trecho do livro “Encantamento – Sobre a Política da Vida”, de Luiz
Antonio Simas e Luiz Rufino (Mórula Editorial).