Sobre
catarses e expiações...
Por
Alessandra Leles Rocha
Uma quarta-feira com cara de “Sábado de Aleluia”. Afinal, a “malhação do Judas” aconteceu na
madrugada. A humanidade sendo a humanidade repete a sina de escolher seus “bodes expiatórios” para realizar a sua
catarse. Uma pena que seja inútil essa tentativa, na medida em que os
descaminhos teimam em se repetir e a tal “libertação”
não alcança a profundidade e a complexidade verdadeiramente necessárias à
transformação.
Tudo começa de o fato das pessoas
insistirem em transferir seu ódio ou idolatria sem nenhuma reflexão. Elegem alguém
ou alguma coisa e pronto. E ali começam a depositar uma avalanche de expectativas,
muitas delas infundadas, que são incapazes de se alinhar ao que realmente
sustenta e traduz o outro.
Ora, ninguém vive em um comercial
de margarina! A existência humana é deveras desafiadora e complicada. Cada um
carrega consigo uma bagagem pesada de acontecimentos e experiências que, quase
sempre, implicam em marcas, em mágoas, em tristezas profundas, difíceis ao
ponto de se converterem em algo melhor e mais produtivo.
Então, o que vem pesando cada vez
mais nesse processo catártico é a imensa dificuldade dos seres humanos em
lidarem com a realidade da vida. A escolha de um “Judas” é uma maneira de dissipar uma energia contida e que, na
verdade, gostaria de ser atribuída a outras pessoas e coisas. Mas, como essas
lhe parecem mais inatingíveis, mais difíceis, elas buscam uma via mais simples,
um jeito mais cômodo para “exorcizar” esses seus fantasmas internos.
Sem contar, que isso lhes garante
uma certa proteção, um certo distanciamento da sua própria responsabilidade
naquilo que lhes trouxe tanto mal, tanto desconforto, tanta indignação ... Sim,
esse “Judas” não deixa de ser um
espelho que reflete o mais profundo de si mesmo, aquilo que se tenta esconder,
encobrir, porque é sofrido confrontar. Como escreveu Caetano Veloso, “É que Narciso acha feio o que não é espelho”1.
E nesses que são tempos tão complexos,
encarar à realidade não tem sido tarefa nada fácil. São muitas frentes de dor e
de luta tanto do lado de fora quanto do lado de dentro da alma. Um momento ímpar
de desconstrução e, ao mesmo tempo, de ressignificação da vida, das relações,
das prioridades, das qualidades, dos defeitos; enfim... A vida está “fechada para balanço”, ainda que muitos
resistam em admitir.
Essa é a hora de perceber a
fragilidade e os riscos que se escondem nos “bodes
expiatórios” cotidianos. Quem assistiu ao filme Rocky Balboa, de 2007, deve
se lembrar dessa citação, “A vida não é
sobre quão duro você é capaz de bater, mas sobre quão duro você é capaz de
apanhar e continuar indo em frente. Ninguém baterá tão forte quanto a vida. Porém,
não se trata de quão forte pode bater, se trata de quão forte pode ser atingido
e continuar seguindo em frente”.
Transferir as suas insatisfações,
as suas frustrações, a sua ira, o seu ódio, ou quaisquer outras emoções e
sentimentos ruins, não vai mudar em absoluto o curso da história. Fazer algo
assim é, simplesmente, “passar recibo”
daquilo que você sente desconfortável em si mesmo e não tem a ousadia de
enfrentar e mudar. Aí, você ao desqualificar, julgar, “malhar” o outro, você se
esconde do mundo. Trata-se de uma tentativa simplista de autonegação, de autobanimento,
sem exposição ou ranhura.
Além disso, há o fato de que se você
faz do outro o alvo desse tipo de investida é líquido e certo que a
reciprocidade exista. Não, não é só o outro que merece ser “punido” e “condenado”;
você também. Na sociedade em que vivemos, as pessoas passam de algozes a vítimas
em fração de segundos, porque todos são falíveis, todos erram, todos têm
defeitos. Ninguém é mais ou menos na fila do pão.
No fim, como escreveu Albert
Camus 2, “O homem não é nada em si mesmo. Não passa
de uma probabilidade infinita. Mas ele é o responsável infinito dessa
probabilidade”. Portanto, desconsiderar esse aspecto nos faz retornar ao
tempo das arenas romanas, em que o público se divertia, se comprazia com a violência
contra os cristãos; como se estivessem em uma posição privilegiada, quando na
verdade não estavam. As mazelas alheias, os defeitos alheios, não expiam os
nossos. A catarse que se tem é meramente ilusão. A vida humana é algo pessoal e
intransferível. De modo que a sina que
nos é imposta é a de buscarmos a melhoria e o aperfeiçoamento do que somos
enquanto seres humanos. Uma proposta e tanto, diga-se de passagem! Que além de cobrar
tempo, cobra foco, disciplina; mas, acima de tudo, consciência e reflexão
humanitária.