A
humanidade em estado de liquefação
Por
Alessandra Leles Rocha
Quando o sociólogo polonês
Zygmunt Bauman teceu suas teorias e reflexões sobre uma Modernidade e seus
amores “líquidos”, a vida pareceu bizarra demais. O pior é que ele estava
certo; mas, talvez, um tanto quanto comedido para nos confrontar com algo mais
assustador nesse processo. A liquefação das relações, a qual ele se referia,
atingiu bem mais do que amores e paixões: atingiu o caráter, o bom senso, o
respeito, a dignidade humana.
A máxima de que “os fins justificam os meios” nunca foi
tão banalizada como agora. Seres humanos e sua humanidade não são computadas na
lógica do cotidiano vigente. A mercantilização e sua precificação atingiram
espectros inimaginados. Como se tudo e todos andassem com suas etiquetas e
códigos de barras à mostra; mercadorias disponíveis nas vitrines da vida. Quem
já leu o poema “Eu, etiqueta” 1, de Carlos Drummond de Andrade entende
bem o que estou dizendo.
A dinâmica da existência humana
está sendo regida pelos fins. Não há nenhum tipo de preocupação ou
constrangimento se as decisões estão certas ou erradas, se são boas ou ruins,
se irão resolver ou não ... Desde que atendam a interesses específicos de uns e
outros, isso é o que importa. Não é sem razão que a vida perdeu seu valor.
Olham-se uns para os outros em um nível de objetificação impressionante. Como
se alguns valessem mais do que outros. Como “coisas” que podem ser facilmente
substituídas. ...
De modo que nada parece conter
esse processo; um certo automatismo tomou conta da humanidade em todos os seus
vieses. A despreocupação com as consequências, com os desdobramentos de seus
atos, é estarrecedora. Agem como se não houvesse amanhã, tomados por um
imediatismo ensandecido e plenamente desumano. Passam por cima uns dos outros
como verdadeiros rolos compressores.
O nível de volatilidade que se
instalou no caráter, no bom senso, no respeito, na dignidade humana já
ultrapassou qualquer padrão de tolerabilidade. As pessoas parecem desconhecer o
significado desses valores e princípios, o que justifica pensar numa regressão
aos primórdios da barbárie, quando tudo se restringia a Lei de Talião na rigorosa
reciprocidade do crime e da pena, ou seja, “olho
por olho, dente por dente”.
E, certamente, é isso que deveria
nos chocar, nos impactar com o máximo de severidade. Perceber a que ponto a
raça humana chegou pela sua hábil e competente capacidade de retrocesso. Apagando
da memória um a um dos pontos que a levaram a ser diferente dos demais animais.
Negando, sobretudo, as raízes da sua sensibilidade; o que significa ter se desconectado
da sua compaixão, piedade, empatia, delicadeza, ternura ...
E isso, caro (a) leitor (a), não
foi obra da Pandemia de Sars-Cov-2. Isso o vírus não pode levar como crédito da
sua intempestiva ação destruidora. Já estava entre nós. Já fazia parte da nossa
deterioração social. O que aconteceu foi, apenas, tornar-se mais visível, mais
eloquente, quando os falsos pudores se esfacelaram diante das investidas do
improvável.
A Pós-Pandemia será, portanto, o resultado
de como esse processo irá reorganizar os escombros. Como a humanidade chegará
ao final dessa hecatombe pandêmica tendo que enfrentar desafios de alto
espectro dentro e fora de si mesma, por enquanto, não passa de especulação. Mas,
uma coisa é fato, será essencial suturar todas as antigas feridas que se
abriram nas suas relações sociais ao longo do tempo; bem como, digerir o que
não foi digerido até aqui.
O que não significa se tratar de
um movimento genuinamente natural, por conta de uma consciência real a
respeito; mas, por demandas e conjunturas urgentes. A começar por um cansaço
moral que paira sobre a humanidade e faz da coexistência um gigantesco
emaranhado de fios desencapados prestes a entrar em curto. Em seguida, a impaciência
com o “mais do mesmo” que se arrasta pesadamente
sem fim. A necessidade de alento para regar as sementes de esperança que não se
perderam pelo caminho. E por aí vai ...