De
volta aos tempos do “Bang! Bang! ”
Por
Alessandra Leles Rocha
Que ameaça é essa que precisa ser
combatida com armas? Nem mesmo duas grandes guerras mundiais e tantos outros
conflitos no mundo são capazes de trazer uma explicação plausível para essa
intenção. Imagina, nesse momento, em plena Pandemia, o que armas poderiam fazer
no combate ao Sars-Cov-2? Nada. Armas não resolvem ameaças à humanidade. De nenhuma
ordem. De nenhuma razão.
No alto de mais de 5 décadas de existência
não vi nenhuma manchete divulgar com ou sem entusiasmo que armas haviam acabado
com a miséria no mundo, ou descoberto a cura do câncer ou da AIDS, ou findado o
analfabetismo e revolucionado a qualidade e a acessibilidade à Educação, ou
extirpado a presença da violência pela sua simples imposição, ou criado
milhares de oportunidades de emprego e renda ... Não, eu nunca presenciei
nenhuma notícia assim.
Ao contrário da minha vontade ou
das minhas expectativas, as informações a respeito vieram sempre banhadas de
dor, de sofrimento, de angústia, de perda. As armas vêm sendo ao longo da
história o instrumento mais simplista e banalizado para substituir o diálogo. A
solução rápida para uma manifestação plena e absoluta da irracionalidade. A expressão
da incapacidade argumentativa do bom senso. A ruptura completa com a inteligência
e a cognição para a instauração do silêncio que ocupa os cenários beligerantes
do mundo.
Uma arma nas mãos não é só uma
questão de estado de espírito, de comportamento, de consciência ou não. Pessoas
atiram por diferentes razões que as levam a agir de uma maneira que não
oportunize ao outro um direito de resposta. Atiram sob efeito de drogas lícitas
ou ilícitas. Atiram no trânsito. Atiram para comemorar ou celebrar alguma
coisa. Atiram por preconceito, intolerância, ódio ... Atiram para se suicidar. Enfim,
atiram porque sabem que dispõem de uma arma para fazê-lo. Como se aquele ato
finalizasse ali.
Mas, não é assim que acontece.
Tenho aprendido diariamente, nesses tempos pandêmicos, o quanto a morte
reverbera. Passei a ter uma dimensão cada vez mais clara do quanto o findar da
vida retira, também, o ar de quem está em volta. Famílias, amores, amigos,
conhecidos e desconhecidos. Uma fila de gente que fica por muito tempo sem
saber como respirar para seguir em frente.
E olha que uma doença,
geralmente, é um processo que permite uma compreensão maior dos acontecimentos.
Mas, uma fatalidade por arma de fogo não. É literalmente um de repente; quase sempre,
por conta da exceção do suicídio, causada por alguém conhecido ou desconhecido.
Então, o fato adquire uma proporção ainda maior e mais pesada. Imagina pensar
que, na contramão ética, moral e jurídica, um ser humano resolveu tirar a vida
do outro. Não há como justificar o que tão obviamente é injustificável.
Infelizmente, a sociedade
transita muito pelo comportamento de copiar as ações uns dos outros. Pessoas dispõem
de armas porque sabem que na sociedade outras, também, dispõem. Aí, então, argumentam
que isso é para sua segurança, para uma eventualidade. Mas, não é. Mesmo exímios
atiradores de elite sabem que um tiro de arma de fogo pode matar; que dirá,
portanto, quem não é tão competente assim. No fundo, ter uma arma é sim uma sinalização,
ainda que subliminar, da intenção de matar. E quantos não deixam suas armas mal
acondicionadas, em lugares inapropriados, vulneráveis para que outros tenham
acesso a elas...
Ter uma arma implica
necessariamente em assumir esse risco. Só que o risco de matar traz o risco de
morrer, o risco de se tornar ou fazer com que alguém fique deficiente, o risco
de ser processado e ir parar em uma prisão, o risco de ver sua história seguir
por caminhos impensados e plenamente dolorosos. Não é só uma questão de
escolha, de poder adquirir uma arma ou não, de fazer curso de tiro ou não, de
ter dinheiro ou não para arcar com as consequências. É muito mais. É muito mais
profunda e complexa a questão.
De volta as minhas observações do
agora, em que hospitais e profissionais de saúde estão dando a própria vida
para salvar outras, que há insuficiência de leitos e UTIs, é profundamente
desalentador pensar que alguém lute e defenda a aquisição e o porte de
verdadeiros arsenais no país. Enquanto silenciam-se em relação a todas as
demandas emergenciais que a sociedade brasileira, em sua quase totalidade,
aspira.
Nunca estivemos tão próximos e íntimos
da morte como agora, para nos abstermos de pensar em tudo o que possa de algum
modo favorecê-la. Só com o Sars-Cov-2 já são quase 2 milhões e meio de mortos
ao redor do planeta. O que pensar, então, sobre as outras faces da perda, hein?
Quanto da raça humana está sendo dilapidada? Qual o perfil de sobreviventes
restará para reconstruir a vida após esse processo todo? ...
Essas são apenas algumas, dentre inúmeras,
questões que se precisa refletir. Especialmente, aqueles que se permitem
absorver quase por completo pelas questões de ordem econômica. Não é possível compartimentalizar
a existência humana em assuntos e pensar que se pode lidar com cada um deles em
separado.
Como disse Mahatma Gandhi, “a vida é um todo invisível” e, por isso,
ele tinha tanta convicção em afirmar que “A não violência e a covardia não
combinam. Posso imaginar um homem armado até os dentes que no fundo é um
covarde. A posse de armas insinua um elemento de medo, se não mesmo de
covardia. Mas a verdadeira não violência é uma impossibilidade sem a posse de
um destemor inflexível”.
Portanto, sejamos seres humanos destemidos. É tempo de resgatar o instinto de sobrevivência de nossa espécie. De reaprender a dialogar. De reconectar a empatia. De ressignificar as diferenças. De construir mais e destruir menos. De simplesmente ter coragem para ser, uma vez na vida que seja, humanos.