sábado, 16 de janeiro de 2021

O que extrair do silêncio e da inação que nos rodeia?


O que extrair do silêncio e da inação que nos rodeia?

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Apesar da indignação, da tristeza, da dor... que teimam em nos queimar um pouco mais do oxigênio, é preciso pensar. Séria e profundamente. A fim de abstrairmos as camadas de intenções que se escondem em ato por ato dessa história chamada COVID-19. Sei que é difícil; quase impossível recobrar a razão consumida pelas piores emoções. Mas, se pretendemos nos posicionar a respeito é imprescindível fazê-lo.

Quando vejo o silêncio expresso na inação de muitos cidadãos e autoridades, lembro-me do que escreveu Mary Shelley em sua obra Frankenstein ou o Prometeu Moderno, em pleno século XIX. Isso porque a humanidade vive a criar seus monstros para satisfazer sua vaidade, sua sede de notoriedade e poder; mas, depois não sabe o que fazer com o resultado da sua própria criação.

Então, se desespera. Porque as criaturas cobram-lhe todos os direitos de serem a sua imagem e semelhança e desfrutarem os benefícios disso, ou seja, autonomamente desempenharem o protagonismo de sua história. A cada vez que os criadores tentam se desvencilhar das criaturas, estas são tomadas por um furioso sentimento de abandono revelado pela necessidade de sobrepor as suas identidades a de seus criadores.

Esse embate que se estabelece, então, entre criador e criatura, encontra na possibilidade de ter nas mãos o “fazer viver” e o “deixar morrer” o seu ápice. Foi o que Michel Foucault, na década de 70, formulou como sendo o conceito de Biopoder. Assim, torna-se possível para quem detém o poder estabelecer mecanismos que sejam capazes de separar quem deve viver e quem deve morrer; bem como, justificativas teóricas que sustentem suas ações. Um exemplo disso é o racismo.

Disso se pode, então, extrair que “a manifestação do poder que pune: não é absolutamente a exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o controle. Nos “excessos” dos suplícios, se investe toda a economia do poder” (FOUCAULT, 1999, p.37)1. O que significa que, enquanto o desespero se instala entre a população, que a carência de recursos, bens e serviços se manifesta, quem tem o poder nas mãos triunfa seu regozijo de perceber a posição que ocupa sobre os demais. Suas atitudes não são impensadas; muito pelo contrário, são milimetricamente pensadas. Porque, de uma maneira ou de outra, elas serão decisivas no curso da história.

Portanto, o Biopoder e o poder econômico vêm caminhando lado a lado no país; na medida em que um sustenta o outro, tanto na teoria quanto na prática.  É nesses poderes que se cria um tipo de “superfície de gelo” que limita o confronto para uma transformação. A própria consciência dos envolvidos os deslegitima a agir em oposição ao Biopoder e ao poder econômico instituídos; afinal, eles deram vida há muitas criaturas. Eles temem cair em águas geladas. Por isso há silêncio. Por isso há inação.

No entanto, há limites. As conjunturas se sustentam até um determinado ponto e, então, elas de repente começam a ruir. Diante do desconhecimento que reveste o SARS-COV-2 e que se acentua a cada dia, dada a intensa capacidade de transformação que ele tem, não se pode desconsiderar que as fraturas conjunturais já começam a se intensificar e trazer a preocupação para o campo real. Afinal, o SARS-COV-2 atingiu direto as estruturas do Biopoder e do poder econômico dentro de uma perspectiva que não havia sido prevista e nem planejada nos campos do poder.

Talvez, não mais faremos as perguntas “quem vai viver” e “quem vai morrer”; mas, “quem vai sobreviver” e “como vai sobreviver”. Se os escombros desse processo serão suficientes para manter o país de pé, também, havemos de aguardar.

O fato é que nem tudo foi ou é culpa do vírus. A culpa foi é e continuará sendo, se não mudarmos, de todos os “criadores” e “criaturas” que se permite desenvolver na sociedade. Porque, segundo escreveu Mary Shelley, “Mente calma, a salvo de paixões perturbadoras, é a condição do ser humano em seu estado normal. [...] Se essa norma fosse sempre observada, se todo homem estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (SHELLEY, [1817], p.54) 2.

 

 


1 FOUCAULT. M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20 ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1999. 288p. (Título original: Surveilleret punir.)

2 SHELLEY, M. [1817]. Frankenstein: or The Modern Prometheus. Tradução de Pietro Nassetti. Disponível em: http://lelivros.love/book/frankestein-mary-shelley/. Acesso em: 1º jul. 2019.


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