quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Reflexões sobre a objetificação humana


Reflexões sobre a objetificação humana

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Há algumas décadas me deparei com uma imagem em um livro, cuja referência dizia “Em uma sociedade de consumo tudo se transforma em mercadoria”. Eram várias cabeças raspadas, exibindo no dorso delas um código de barras. Aquilo me deixou profundamente consternada em razão do significado reflexivo presente. De fato, em um ponto da história a humanidade passou a objetificar seus pares com tamanha naturalidade que chega a ser assustador.

A objetificação retira do indivíduo a possibilidade de ser e existir em toda a sua plenitude. Desse modo, ela suprime sumariamente o valor das subjetividades humanas, atrelando-as a uma precificação bárbara e cruel. Aptidões, talentos, habilidades, competências tornam-se inócuas se não desencadearem automaticamente uma materialização capital, uma ascensão social. Ou seja, pessoas se tornam visíveis apenas sob o reflexo daquilo que podem possuir e desfrutar em termos materiais.

Isso significa que por trás do mundo competitivo se esconde uma perversa narrativa que conduz milhões de seres humanos a mais absoluta exaustão existencial. Porque, segundo esses “ditames”, elas precisam SER o que puder lhes favorecer o TER, não importando o quanto isso lhes custe ética, moral ou psicologicamente ou quais os meios necessários para alcançar esse patamar. A raça humana foi, portanto, submetida ao altar dos sacrifícios mundanos, para honra e glória da riqueza e do poder.

Relembrando os relatos da Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, quando os trabalhadores das fábricas trabalhavam em torno de 18 horas por dia, em condições insalubres e por salários miseráveis; cabe refletir a respeito no contexto das conjunturas atuais. Porque se hoje existem leis trabalhistas, entidades voltadas para as relações de trabalho, como é o caso da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o movimento de escravização social transita muito mais pelos caminhos dos valores que regem o inconsciente coletivo do que simplesmente pela necessidade de sobrevivência e dignidade humana.

A garantia do espaço de cada um na sociedade vem sendo estabelecida na lógica do “vale quanto pesa”. Portanto, não basta estar vivo. É fundamental ser capaz de produzir bens e riquezas, para adquirir o passaporte de inserção nas camadas de privilégios e, assim, tornar-se visível, importante e respeitável; inclusive, com direito a opinar e defender sobre seus próprios interesses e regalias.

De modo que as pessoas, então, trabalham, trabalham, trabalham... enquanto descobrem que a vida nunca lhes dá garantias sobre nada, exceto a morte. Essa dinâmica absurda é tão sacrificante que gera certo torpor depois de algum tempo; o que faz com que elas permaneçam inertes no movimento. Observado bem de perto, isso se traduz no adoecimento da sociedade.

Assim, surgem as legiões de soldados de lutas inglórias. Pessoas que lutam bravamente por questões que na verdade não lhes fazem sentido algum, foram apenas impostas e reafirmadas no seu inconsciente por meio de mecanismos sugestionáveis, os quais lhes impedem de construir um pensamento próprio e raciocinado. Ninguém lhes pergunta, de fato, como quando ou o que querem; porque a sua resposta é dispensável ao conjunto do sistema.

Assim, na medida em que suas vozes se calam, suas almas vão sendo lentamente asfixiadas e comprometidas pelas doenças da mente e, por consequência, do corpo. O ser humano objeto, produto, mercadoria é uma concepção que interessa a alguns; mas, que jamais se constitui na verdade. Não há como transmutar a essência humana; daí a avalanche de sofrimentos, de compulsões, de frustrações, de angústias, de depressão, ... de suicídio.

Esse caminhar da raça humana o fez perder o fio da meada de si mesma.  Quem não se lembra do poema Retrato, de Cecília Meireles 1? Embora suas palavras busquem refletir o envelhecimento, particularmente o vejo como a melhor tradução do distanciamento que a humanidade tem se permitido da verdadeira e primeira identidade. Aqui e ali vê-se pessoas perdidas, atônitas, perturbadas diante das mais corriqueiras trivialidades. Não sabem lidar nem com o simples e nem com o complexo do mundo, porque não sabem quem são, o que são, o que querem de si e para si. As pressões e opressões lhes fizeram presas ao dilema, “Ou isto ou Aquilo” 2, como se a vida só pudesse ser vista sob o peso das escolhas, as quais no fundo não mais lhes pertencem dadas as conjunturas sistêmicas.

Oscar Wilde escreveu “há momentos em que é preciso escolher entre viver a sua própria vida plenamente, inteiramente, ou assumir a existência degradante, ignóbil e falsa que o mundo, na sua hipocrisia, nos impõe”. E ele está certo. Porque, a existência é breve. Um dia mercadorias perdem a utilidade, o valor; são descartadas para que outras ocupem seu espaço e cumpram o seu papel. Mas, gente tem vida; e a vida nunca deveria perder a utilidade, nem o valor, independentemente do tempo, do lugar e/ou do próprio ser humano.    

 



1 “Eu não tinha este rosto de hoje, / Assim calmo, assim triste, assim magro, / Nem estes olhos tão vazios, / Nem o lábio amargo. / Eu não tinha estas mãos sem força, / Tão paradas e frias e mortas; / Eu não tinha este coração / Que nem se mostra. / Eu não dei por esta mudança, / Tão simples, tão certa, tão fácil: / - Em que espelho ficou perdida / A minha face? ”. (https://www.escritas.org/pt/t/1505/retrato)

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