A
visibilidade invisível
Por
Alessandra Leles Rocha
Embora o dia seja
para celebrar a luta contra a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS)1, que assola o mundo há aproximadamente
40 anos, penso ser possível expandir a reflexão além dela. O mundo cruel e
belicoso que convive às turras parece insistir em não perceber que seus maiores
inimigos não têm corpo, não têm alma, não têm armas são simplesmente invisíveis
aos seus olhos.
Talvez a AIDS tenha
sido a primeira grande ruptura contemporânea com a suposta ideia da
imortalidade cultuada pelos seres humanos, por conta da complexidade que a levou
a um processo muito lento e gradual de conquistas científicas a seu respeito. Passadas
tantas décadas, a ciência ainda não alcançou a possibilidade da cura plena dos
pacientes, trazendo a literatura médica raríssimos casos pontuais nesse
sentido.
Portanto,
alcançaram-se tratamentos importantes e eficientes no controle da patologia
principal e seus desdobramentos; mas, nenhuma vacina a fim de uma prevenção
maciça da população. O que significa que essa é uma doença letal, pertencente
ao rol de muitas outras que tomam a atenção da ciência, no que diz respeito aos
possíveis avanços e descobertas; mas, nem sempre desperta a consciência preventiva
e cuidadosa da população.
E todas essas considerações
são profundamente valiosas porque podem fazer emergir um olhar mais consciente
do ser humano sobre si mesmo. O limite entre a nossa existência e a nossa
falibilidade é tão invisível quanto quaisquer ínfimas partículas patogênicas
que coexistem conosco, sem que ao menos possamos percebê-las.
De modo que a
narrativa da força, da superioridade, do poder, do enriquecimento, se esvai
como fumaça repentinamente, quando tomados de assalto por microrganismos
conhecidos ou desconhecidos. Nada do que somos, quando supostamente saudáveis e
bem-dispostos, se reflete na aparência frágil e abatida oriunda das
manifestações patológicas. O corpo se encolhe, se recolhe na busca pelos fiapos
de energia combativa, perdendo o viço e a altivez.
A doença faz do ser
humano um combatente sem canhão, sem metralhadora, sem pistola; mas, sobretudo,
sem conhecimento profundo sobre o próprio campo minado que está a pisar. A inteligência
das enfermidades está sempre um passo adiante, por isso demora-se tanto a ter a
resposta certa, a reação precisa. Diante dela o ser humano fica desnudo de si,
como se temporariamente perdesse a capacidade de tomar decisões, de existir no
contexto daquilo que sempre conheceu por plenitude.
As mazelas são,
portanto, o espelho da vulnerabilidade humana. Isso significa que cada
patologia ensina uma lição de como curvar-se em nome da ajuda, do socorro, do
cuidado. Afinal, ninguém é tão autossuficiente assim, que não precise de uma
mão estendida, de uma palavra de conforto, de um amparo eficiente. De repente o
ser humano se depara com as obviedades da vida. Questões como humildade, empatia,
fraternidade, desapego, amor ao próximo... se tornam claras e fáceis de
entender.
Então ao invés de mal
dizê-las, talvez fosse mais correto, de algum modo, bem dizê-las. Porque querendo
ou não aceitar, a humanidade não parece muito disposta por livre e espontânea vontade
a rever seus conceitos, reavaliar suas condutas, fazer mea culpa de seus defeitos. É preciso mais. Um remédio mais forte.
Uma lição mais aprimorada. Um agente que mude o curso da história a sua
revelia, para que ela não tenha outra opção senão aceitar, senão se transformar.
Vejo as pessoas
correndo afoitas, desesperadas, absorvidas por questões tão sem sentido,
negligenciando as prioridades, as necessidades, como se a vida pudesse sempre
esperar. Ela até pode; mas, não muito, não infinitamente. O cotidiano já é
pesado e conturbado por natureza, para que as pessoas se deem ao luxo de tornar
tudo mais difícil e beligerante para si e para o mundo. É necessário, então,
conter as neuroses e psicopatias humanas para tornar possível enfrentar com
mais suavidade e destemor todas as outras doenças e mazelas que residem entre
nós.
Portanto, pode ser que
você não morra de AIDS, ou de Tuberculose, ou de algum tipo de Câncer, ou de Malária,
ou de Dengue, ou de Sífilis, ou …. de COVID-19; o que não quer dizer que não
possa morrer por pura falta de afeto, de respeito, de solidariedade, de amor. Porque
a morte, certeza inconteste da vida, chega sempre pelas mãos do invisível, do
abstrato, do desconhecido, apesar de nos considerarmos tão absolutos e visionários
senhores de nossos caminhos. Afinal, ninguém está a salvo. Ninguém está
totalmente seguro. Nem mesmo eu, você ou qualquer um por aí!