sábado, 18 de agosto de 2018

Crônica do fim de semana!

Sem dó nem piedade



Por Alessandra Leles Rocha




Entre estranhamentos, ignorâncias, passividade e desatenção caminha a humanidade, quando o assunto é a prevenção de doenças. Quem não se lembra, nos livros de história, da Revolta da Vacina 1? Apesar de toda a sua capacidade cognitiva e do seu célebre instinto de sobrevivência, vez por outra o ser humano faz “ouvidos de mercador” e se expõe a riscos desnecessários.
Talvez por estabelecer uma conexão totalmente equivocada entre o desenvolvimento científico e tecnológico e a “imortalidade” é que as pessoas saem por aí esbanjando inconsequência. Sim, as ciências como um todo têm contribuído e muito para o aumento da expectativa de vida, para a prevenção e cura de inúmeras doenças; mas, nem por isso, elas nos deram um certificado de garantias vitalícias. Aliás, ainda se morre por falta de saneamento básico, fome, Dengue, Febre Amarela, Malária, Leishmaniose,... Sinal de que nem tudo está efetivamente sob o nosso controle.
Mesmo porque, as ciências e as doenças caminham sobre um vasto campo de expansão. Em ambos os casos não se conhece tudo. Por mais que se pareça muito, o muito ainda pode ser mais e mais explorado. De repente, surgem agentes infecciosos nunca antes conhecidos pelo ser humano e a sociedade se depara com uma questão a ser resolvida, não se sabe como.
Muito antes da H1N1, por exemplo, a humanidade já tinha experimentado os horrores da Gripe Russa (1889-1890), com aproximadamente um milhão e meio de mortos, da Gripe Espanhola (1918-1919), com cerca de cem milhões de mortos, da Gripe Asiática (1957-1958), com dois milhões de mortos e da Gripe de Hong Kong (1968-1969), com cerca de três milhões de mortos 2. Sem contar outras epidemias, tais como, a Peste Negra (1333-1351), a Cólera (1817-1824), a Tuberculose (1850-1950), a Varíola (1896-1980), o Tifo (1918-1922), a AIDS (desde 1981) 3. E muitas dessas epidemias citadas, ainda permanecem vitimando milhares de pessoas ao redor do planeta.
Durante os momentos de crise, as pessoas tendem a agir com mais cuidado, mais cautela para se prevenir. Mas, ao menor sinal de controle por parte das autoridades, o que significa a descoberta de medidas profiláticas mais eficazes ou o surgimento de algum tipo de fármaco capaz de mitigar ou eliminar a doença, emerge um alívio social que reduz os níveis de preocupação a limites bastante questionáveis.
Com o advento da penicilina, descoberta por Alexander Fleming em 1928, a possibilidade de se tratar infecções bacterianas trouxe esperança para milhares de pessoas, especialmente em situações pós-operatórias, quando se tornam mais vulneráveis a tais agentes infecciosos. Mas, em contraponto, certos hábitos de desinfecção foram sendo aplicados com menos rigor, como por exemplo, a lavagem correta das mãos após cuidar de um paciente antes de atender a outro, a manutenção de distâncias maiores entre os leitos, manter os jalecos e roupas de uso médico sempre limpos, evitar transitar por outras áreas após atendimento em área de infecção, limpar e desinfetar corretamente os instrumentais e demais equipamentos médicos.
 A consequência tem sido a recorrência de episódios de infecção hospitalar, os quais muitas vezes obrigam a interdição temporária de leitos e setores até o resultado de desinfecção completa do local.   Situação que impõe uma limitação a mais ao atendimento da população, já obrigada a enfrentar a recorrente carência de leitos, especialmente em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e Semi-Intensiva, ou seja, as mais expostas aos riscos de infecção. Sem contar, o fato de que pelo uso excessivo de antibióticos as bactérias têm se tornado cada vez mais resistentes, transformando-se em super bactérias.
Então, vamos percebendo a incapacidade do ser humano em colaborar, consigo e com os outros, em relação à saúde. Hábitos simples, atitudes proativas que poderiam resultar em uma qualidade de vida melhor vão sendo negligenciadas, postergadas ao momento em que se tornarão críticas e cujo empenho de recursos logísticos e financeiros podem não existir ou serem insuficientes e/ou ineficazes.  
E apesar disso, o Brasil ainda é um país que busca oferecer um atendimento amplo e gratuito de saúde aos seus cidadãos. Na década de 1970, por exemplo, foi criado o Programa Nacional de Imunização (PNI) que oferece gratuitamente ao cidadão 42 tipos de imunobiológicos (anticorpos monoclonais, proteínas de fusão ou citocinas humanas recombinantes) e 25 vacinas 4.
Mesmo em tempo de crise econômica, com elevadas taxas de desemprego no país, as pessoas dispõem de vacinação gratuita e isso representa uma forma bastante significativa de evitar não só que a doença se dissemine entre a população, mas que seus desdobramentos e consequências repercutam em gastos vitalícios. De fato, prevenir é melhor do que remediar.  
Mas, em tempos que se vive a ânsia do aqui, do agora, todos esquecem de que a vida não para e o inusitado nos aguarda na espreita. O mundo já desvelou muitos séculos e, por isso a ideia dos estranhamentos, ignorâncias, passividade e desatenção não me convencem e nem justificam, quando o assunto é saúde. A questão está em nosso próprio imediatismo que nos impede de pensar no amanhã. Vacina gratuita, o indivíduo não quer se vacinar. Remédio para pressão arterial, o indivíduo se esquece de tomar. Exercícios físicos regulares, o indivíduo nunca encontra tempo. Alimentação saudável, o indivíduo tem preguiça em cozinhar... Aí, quando se dá conta, ele está doente e, não raras as vezes, transmitindo para outros tantos.
Reclama-se muito da realidade do Sistema de Saúde no Brasil, com razão. Há problemas crônicos a serem efetivamente extirpados para propiciar mais dignidade e eficiência ao usuário. No entanto, é necessário admitir que só quando a necessidade urgente bate à porta da população é que ela demonstra a importância do Sistema de Saúde. Na maior parte do tempo, o descaso de muitos cidadãos em relação à prevenção de doenças sinaliza aos gestores públicos e ao Estado que a Saúde não é uma prioridade.
Se o sistema precisa mudar, o cidadão também precisa. O sistema não pode desperdiçar e negligenciar o dinheiro público, nem tampouco o cidadão fazer vista grossa a essa situação, como se o dinheiro não viesse do seu próprio bolso. O sistema precisa fazer a sua parte constitucional de provedor e gestor do Sistema de Saúde; mas, o cidadão também precisa enquanto provedor e usuário consciente e responsável.
Bem mais do que quaisquer doenças, o que mata a humanidade sem dó nem piedade é a indiferença, a negligência, a irresponsabilidade, a inércia... Cuidar da saúde é um ato de amor próprio; mas, também, de cidadania. Um ato diário e ininterrupto. Quando eu vejo as pessoas desperdiçando sua saúde, alheias a tudo o que isso representa, penso naquelas que verdadeiramente não tiveram ou não têm acesso a um remédio que seja. Aliás, que não têm acesso ao remédio mais elementar que é o próprio alimento e cuja fisionomia esquálida da miséria compartilha sem restrições a oportunidade de nos recobrar a razão e a gratidão diante da vida.