OPERÁRIOS – Tarsila do Amaral
“Locais” x “Forasteiros”
Por Alessandra Leles
Rocha
Será mesmo que o ataque é a melhor defesa? Parece
que sim, na medida em que a sociedade voltou a fazer uso da Lei de Talião1 sem a menor cerimônia. No entanto, aos
menos embrutecidos e selvagens os tempos pedem o máximo de cautela e reflexão.
Tendo em vista a racionalidade humana, o ataque
nem sempre é um sinal de defesa. A pós-modernidade aponta para outro viés da
questão, o qual não representa nada de justificável, que consiste em tão
somente ofuscar as próprias imperfeições humanas.
Sim, esse movimento irado e violento que se
dissemina por todos os cantos, especialmente por meio das tecnologias da
informação, demonstra nas suas linhas e entrelinhas um sentimento tão exacerbado
de insatisfação pessoal, que só consegue ressignificar a partir da sua destilação
sobre o outro. Um exemplo simples e trivial são os casos de bullying e de haters nas redes sociais. Mas, a verdade é que vai muito além.
Segundo o sociológico
Zygmunt Bauman (2001) 2 explica,
a raça humana está diante da modernidade líquida, onde a presença de sinais
confusos, a velocidade de transformação e a imprevisibilidade proporcionam ao
individualismo, a fluidez e a efemeridade das relações emergirem. O papel da
comunidade nesse contexto é de um disfarce para a almejada identidade, ou seja,
esta se torna um bem de consumo que apesar de procurado não será encontrado,
será testado e nunca será definitivo.
Entretanto, embora os indivíduos pensem que ao fazerem parte
de uma comunidade, enquanto um grupo que
representa certa identidade, eles não têm a possibilidade de escolha, na
verdade isso é apenas uma ilusão. E essa escolha se baseia na busca pela segurança
num mundo de incertezas. Visto que, o Estado atual foi perdendo gradualmente a
sua característica frente à máquina de modernização da globalização que retirou
os privilégios do espaço e os deslocou para a velocidade.
Portanto, ele deixou de ser aquele que dita
às regras e passou a mendigar as benesses do capital em seus territórios. Isso
estabelece uma ordem de nação por uma ordem supranacional, que leva à perda do
monopólio da violência pelo Estado e sua distribuição às comunidades.
Surge, então, o que Bauman descreve como
“comunidades explosivas”, ou seja, aquelas que precisam de violência para nascer e para continuar vivendo; a fim de
fazer de cada membro da comunidade um cúmplice do que, em caso de derrota,
seria certamente declarado crime contra a humanidade e, portanto, objeto de
punição.
Tendo em vista o fato de que essas comunidades não exigem mais o território, podem se mover e atingir
públicos diferentes em locais diferentes, elas de certa forma contêm a solidão
dos indivíduos participantes por alguns momentos, já que funcionam mais como
evento do que como rotina. A esse fenômeno Bauman denominou cloakroom communities, que significa que a população “se veste para a ocasião, obedecendo a um
código distinto do que seguem diariamente” (BAUMAN, 2001, p.228). “Alegria e
tristeza, risos e silêncios, ondas de aplauso, gritos de aprovação e
exclamações de surpresa são sincronizados – como se cuidadosamente planejados e
dirigidos” (BAUMAN, 2001, p.228).
As cloakroom
communities evitam o surgimento de comunidades duradouras, na
medida em que espalham e desmembram os interesses de seus membros, ou seja, a
possibilidade da emergência de uma formação fixa é minada. Elas são parte da desordem social, não uma
forma de resolvê-la.
Isso pode
auxiliar na compreensão do que vem acontecendo em relação aos imigrantes venezuelanos,
no Brasil. A crise político-econômica que se abateu sobre o país vizinho
obrigou milhares de pessoas a transpor a fronteira para o Brasil, em busca de sobrevivência.
No entanto, o país não estava preparado para tamanho fluxo migratório, principalmente
sob o ponto de vista das cidades fronteiriças. Diante da desorganização social
que se estabeleceu nesse processo é inevitável que o nível de tensão se eleve e
a insatisfação comece a desencadear conflitos entre ambas as partes 3.
Assim, muitos
brasileiros envolvidos diretamente ou não nessa situação acabam por analisar
tudo do prisma mais simples, ou seja, quaisquer problemas sociais que venham a
acontecer no local são de responsabilidade dos imigrantes. Inevitavelmente esse
pensamento fomenta ações de natureza violenta e preconceituosa contra os
venezuelanos. Mas, aproveitemos para pensar em quantos brasileiros migraram
para outros países em busca de melhores condições de vida e foram vitimas de
perseguição, intolerância e violência, como o que está acontecendo debaixo do
nosso nariz.
No fundo, essa
crise migratória está tão somente expondo as próprias fragilidades brasileiras
no que diz respeito às demandas sociais. A própria população dessas cidades já
não recebia uma atenção adequada as suas necessidades básicas e agora, está
diante de um fluxo populacional que espera pelas mesmas coisas. Desde a chegada
dos primeiros grupos imigrantes, não se viu por parte dos gestores públicos
estaduais e federais a apresentação de um plano de acolhimento para eles;
apenas, promessas de recursos adicionais.
A questão
migratória no mundo precisa ser efetivamente discutida e planejada conjuntamente.
A grande mobilidade internacional nos processos
migratórios e suas consequências para as identidades de quem migra e de quem os
recebe origina um processo de transformação nem sempre harmônico, ou seja,
característico da desigualdade em termos de desenvolvimento. A diferença que se
estabelece é marcada em relação à identidade através de sistemas
classificatórios que fabricam sistemas simbólicos por meio de exclusão.
Segundo Woodward (2000, p.46) 4,
“Isso sugere que a ordem social é mantida por meio de oposições binárias, tais
como a divisão entre “locais” (insiders)
e “forasteiros” (outsiders). A produção
de categorias pelas quais os indivíduos que transgridem são relegados ao status de “forasteiros”, de acordo com
o sistema social vigente, garante um certo controle social. A classificação
simbólica está, assim, intimamente relacionada à ordem social ”.
Isso significa que essa nova era
de realidades flexíveis e de liberdade de escolha gera a improvável dualidade
da “tentação totalitária” (conceito da filósofa Hannah Arendt) em relação aos
direitos humanos. O totalitarismo como ruptura que se diferencia das formas de
tiranias e ditaduras, na medida em que manipula as massas modernas colocando-as
em uma situação de solidão (de incapacidade de pensar), convoca as pessoas para
o engajamento na ideologia do movimento das leis históricas ou naturais.
Afinal, é no não pensamento que o mal se banaliza.
1 A lei de talião, do latim lex
talionis (lex: lei e talio, de talis: tal, idêntico), também dita pena de talião, consiste na
rigorosa reciprocidade do crime e da pena — apropriadamente chamada retaliação.
Esta lei é frequentemente expressa pela máxima olho por olho,
dente por dente. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_de_tali%C3%A3o
2 BAUMAN, Z. Modernidade
Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. (Título
original “Liquid modernity”).
4 WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução
teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e diferença – A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis:
Vozes, 2000. p.7-72.