Reflexões
da Guilhotina
Por
Alessandra Leles Rocha
Um marco nas relações sociais do
mundo, a Tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, apontou para inversão de
poder entre as classes e os riscos que poderiam se originar desse processo. De fato,
a Revolução Francesa abalou o cenário mundial no contexto de uma transformação
sem precedentes; o povo assumiu a sua legitimidade social e lutou contra a
tirania dos déspotas.
Entre cabeças que rolaram na
guilhotina e o despertar da população, enquanto sujeitos da sua história, a
emoção que o movimento revolucionário de pouco mais de duzentos anos promove,
talvez, nos ofusque demais o pensamento e nos impeça de enxergar com clareza as
entrelinhas do que tudo isso ainda repercute.
A pergunta que não quer calar é: e
depois? É esse depois a grande questão. Acabaram com a corte francesa, com seus
desmandos; mas, a transformação social almejada pela população ficou pelo
caminho. O erro de cálculo estava em pensar que todo o infortúnio e as desgraças
que se abatiam sobre eles se concentrava na figura da nobreza absoluta; quando,
na verdade, se deveria pensar no ser humano, isento de títulos, bens e coroa, como
o grande e único responsável pela desigualdade e outras terríveis mazelas.
Não, não é o sistema de governança
a terrível ameaça. Como dizia Platão, “muitos odeiam a tirania apenas para que
possam estabelecer a sua”. Governos, corruptos, déspotas, são denominações que
necessitam de gente de carne e osso para sustentá-las. Trata-se, portanto, do
ser humano. É esse ser, tido e reconhecido como racional, que imprime seus
desejos e vontades, sua ganância e sua sede de poder sobre o mundo. É ele quem
não sabe reconhecer o semelhante, quem não promove a empatia nas relações
sociais, quem não enxerga além dos limites do próprio umbigo... A tirania é um
traço da barbárie humana, da sua série de condutas e comportamentos deturpados.
E tudo se comprova, na medida em
que pouco tempo depois da Revolução Francesa, na segunda metade do século
XVIII, eis que surge a Revolução Industrial, na Inglaterra, e a partir dela as
relações sociais passaram a estabelecer abismos ainda mais representativos que
aqueles que motivaram a fúria da plebe francesa.
A Revolução Industrial de certo
modo foi um golpe de mestre oportuno para conter as ambições populares que
emergiam pela Europa e, provavelmente, se estenderiam pelo mundo. O trabalho
assalariado estabeleceu a falsa sensação de independência que antes não existia
em relação ao Rei; a população agora trabalhava para outra classe de mandatários,
a burguesia. No entanto, esta era composta por pessoas que em nada diferiam, em
termos de valores éticos e morais, da nobreza. Gente que pretendia espoliá-los
tanto quanto os nobres, para o desfrute de seus delírios e ambições de poder e
riqueza.
De lá para cá, as cabeças que rolaram,
metaforicamente falando, são do povo. Tudo voltou ao status existente antes de
1789. A desesperança, o desemprego, a miséria, a violência, tudo ceifa os
sonhos mais simples e humildes da grande massa popular. Sem contar que,
voltaram à condição da invisibilidade para fazer par com a indigência. As linhas
divisórias são refeitas com mais ênfase a cada momento, para que não sobre
espaço para eliminá-las.
Penso que, às vezes, é como se milhares
de espelhos refletissem a personagem da Rainha de Copas, na obra Alice
no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, de modo que pairasse sobre
nós um grito funesto de “Cortem-lhes a
cabeça!”. Mas, uma ordem dessas não faz mais sentido, na medida em que as
cabeças já se afundaram em um torpor tão absurdo que não representam mais
nenhuma ameaça. Não há necessidade de novas Bastilhas, porque os clamores
populares são dispersos e o povo já está encarcerado nas suas próprias
misérias.
No frigir dos ovos, lamentavelmente,
descobrimos que a Revolução Francesa nos deixou a Liberdade, a Igualdade e a
Fraternidade apenas no papel, como uma história que se conta. O ser humano conseguiu, chegou até aqui,
vivendo tempos sem uma perspectiva de mitigação da desigualdade, com a
liberdade uma ilusão desenhada e as relações humanas o espelho mais bizarro
do individualismo; de modo que, o controle social parece cada vez mais
reafirmar as suas garantias enquanto as oportunidades de insurreição se tornam mais
e mais distantes.
Enfim, como se vê, as páginas da
história ainda não foram totalmente transpostas e as reflexões da guilhotina ainda merecem
a nossa atenção.