A morte nossa de cada dia
Por
Alessandra Leles Rocha
Já se foi o tempo
em que a velhice marcava o fim de uma vida. Hoje, nos sobressaltos do
cotidiano, tudo pode acontecer e abreviar o percurso. Ninguém está a salvo. Em qualquer
lugar... A qualquer hora... Tudo é pretexto para que a imprevisibilidade da
previsibilidade bestial do ser humano dê sinais de sua plena atividade, deixando
claro o quão pouco vale a vida. A opção por abster-se do senso de humanidade nos
dimensiona o quanto continuar fazendo parte dos bilhões do contingente
populacional tem se tornado o grande desafio da vez.
A incapacidade de
se enxergar refletido no outro aponta para o fracasso da “domesticação” humana.
Sim, continuamos bárbaros, selvagens, irracionais, perseguindo a Lei de Talião
como a única maneira de constituir justiça nas relações sociais. Desvalorizamos
a vida na mesma proporção que o fazemos em relação à morte.
Tratamos a perda do
outro com tamanho requinte de trivialidade, de banalidade, de indiferença, de
sarcasmo, que perpetuamos a morte em diferentes instâncias éticas e morais das
relações sociais; como se matássemos inúmeras outras vezes esse ser e, por
consequência, seus familiares, amigos, companheiros de jornada.
É como se tivéssemos
feito uma opção por esquecer-nos de que mesmo parte da vida, a morte é dolorosa,
sofrida. Ela é perda. É luto. É uma infinitude de emoções e sentimentos a
demandar todo um processo de elaboração, de ressignificação; sobretudo, quando
ela não chega pelas vias naturais. A morte que não chega pelas mãos do ciclo
vital, nos amarga pelo peso da usurpação. Alguém nos foi retirado abruptamente
do convívio, sem que pudéssemos reagir a essa perda. Sem que estivéssemos de
alguma forma preparados.
Não é à toa que as
guerras deveriam ser inadmissíveis; aliás, qualquer gesto ou comportamento que
pusesse a vida humana no limite da perda perversa e cruel deveria estar fora de
cogitação. Ao contrário do que parece
pensar a humanidade, a morte não é solitária. Não porque muitos morrem
diariamente; mas, porque para cada vida ceifada mata-se um pouco da alma daqueles
que ficam.
A morte, portanto, empobrece
o mundo. Cada sopro dela tira um bocado do viço, da esperança, da perseverança,
que há na vida. A experiência da morte sempre deixa as suas marcas. Feridas que
sangram involuntariamente. Lágrimas que os olhos vertem sem controle. Solidão
que aperta o peito e parece sufocar. E apesar de tudo isso, tanto descaso com a
vida humana. Talvez, por menos de trinta moedas de prata a vida tem encontrado
seu fatídico destino.
Sempre que reflito
sobre tudo isso, lembro-me desse refrão: “Eu
vivo sem saber até quando ainda estou vivo / Sem saber o calibre do perigo / Eu
não sei d'aonde vem o tiro” 1. E é verdade! Ninguém sabe. Porque a
morte nossa de cada dia, não vem só da arma em punho, da faca, da bomba,...
não. O inesperado dessa violência que brota no seio da sociedade, também, mata
na medida em que adoece lenta e gradualmente o corpo e a alma das pessoas.
No escárnio das palavras e das atitudes que ostentam e reafirmam a
omissão, a negligência, a desassistência, a espoliação,... há uma dose letal de veneno, a ser engolido a
seco diariamente. De repente, viver se tornou a nossa maior ameaça, pois para
qualquer lado que se vire algo espreita a nossa existência. A realidade nos
impôs à sobrevivência ao invés do simples e natural direito de viver. Diante desse
horror vamos nos distanciando da própria dignidade sem ao menos perceber.
Assim, a humanidade se arrasta como galhos que secam pelo agreste dos
corações e das mentes, enquanto a consciência prefere não ver. A verdade é que
ninguém está acima disso, mesmo que pensa estar. Somos seres humanos. Feitos do
mesmo barro, dos mesmos sonhos... Não há hierarquia ou poder que nos torne
diferentes, ao ponto da morte, seja ela qual for, deixar de nos atingir.
Nesse dia
Internacional da Felicidade 2 essa é
uma oportuna reflexão; afinal, como disse o oitavo secretário-geral da Organização
das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, “quando
contribuímos para o bem comum, enriquecemo-nos a nós próprios. A compaixão
promove a felicidade e ajudará a construir o futuro que queremos”. Então...