Infância...
Por
Alessandra Leles Rocha
Falar sobre criança é falar sobre
alegria, espontaneidade, travessura, curiosidade, inquietude, energia... porque
esta fase da vida é mesmo assim. É tempo de SER; não de TER. Na infância os
olhos do corpo e da alma estão bem arregalados para ser feliz, para se divertir
sem limites, sem distinções, sem preconceitos, sem senões desnecessários. Por isso,
a presença de uma criança é sempre renovadora. Só elas preenchem os vazios do
mundo com a sua sensibilidade e ternura naturais.
Pena que a infância passa depressa.
Um breve cochilo e os pequenos lá se vão grandes a enfrentar os desafios do
mundo. Mas, cada dia mais, a duração da infância vai se encurtando e se
transformando em um processo estranho e perigoso, o qual a sociedade precisa
refletir a respeito. Estou falando da Adultização Infantil.
Até as primeiras décadas do século
XX era comum uma infância adultizada. Na medida com que iam crescendo, as
crianças assumiam os mesmos papeis dos adultos fossem as meninas nos afazeres
da casa ou os meninos em trabalhos como engraxate, entregador de jornais ou de pães,
atendente de farmácia etc. As fotografias da época descrevem bem as imagens de
pequenas miniaturas de adultos sisudos e bem comportados. Não havia contestação,
os pais decidiam que iria ser assim e pronto. Muitos pela rudeza da vida com
poucos recursos. Outros pela sensação de que o trabalho precoce traria
disciplina e bons resultados morais para os filhos.
O fato é que os relatos dessas
crianças no futuro deram conta de que o tempo para usufruir a infância foi
pouco e, no fundo da alma, pesava um lamento sofrido diante dessa constatação. Paralelamente
a isso, o mundo por si só evoluiu e se transformou ao ponto de promover reflexões
profundas acerca desse assunto e propor uma ruptura com esse discurso. Assim, além
do bom senso genuíno vieram leis e doutrinas científicas para contribuir com o
resgate da infância, demonstrando claramente a importância desse período para o
futuro de toda a sociedade.
Logo após o fim da Primeira Guerra Mundial,
em 1923, Eglantyne Jebb 1, uma britânica
fez história ao criar o que se pode chamar de a primeira
versão da Declaração Universal dos Direitos da Criança, conhecida como a
Declaração de Genebra de 1924, ao fundar a União Internacional de Proteção à Infância.
Após a Segunda Guerra Mundial, essa declaração foi acrescida de outras informações
pela Organização das Nações Unidas que, também, criou um fundo emergencial para
cuidar das crianças vítimas da guerra, o qual posteriormente deu origem ao
Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) 2
que é regido pela Convenção dos Direitos da Criança, a qual foi adotada pela
Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por
Portugal em 21 de Setembro de 1990 3. Nada de
trabalho pesado e/ou remunerado. Criança tem que ir para escola. Criança tem
que brincar. Criança tem que se divertir. Criança tem que se alimentar. Criança
tem que ser cuidada. Criança tem que ser feliz. Desde então, crianças de todo o
mundo buscam se beneficiar desse direito para poderem ser crianças ao pé da
letra, como se diz.
Mas, observando com um pouco de atenção,
percebemos que apesar dos esforços de muitos, o fenômeno da adultização ainda
persiste, em pleno século XXI. Claro que em outras formas e contextos; mas, ela
está aí construindo os seus estragos sociais. No caso do Brasil, desafiando o próprio
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº.
8069, de 13/07/1990) 4.
De um modo geral, a adultização das
crianças na contemporaneidade está visivelmente direcionada a uma capitalização
ou mercantilização infantil. Elas estão sendo expostas de diversas formas, à
revelia de sua própria vontade, a situações que geram lucro aos pais e/ou responsáveis.
Vestidas (os) com as últimas tendências da moda, elas se tornam ícones nas suas
redes sociais e ampliam o número de seguidores virtuais. Participam de concursos
de beleza ou peneiras desportivas e se submetem a exaustivas horas de preparação.
São muitos os exemplos desse processo, aparentemente normal; já que, conta com
a anuência dos pais ou responsáveis.
Ora, mas não bastasse o
enriquecimento presente nas entrelinhas desse processo, a deformação psicoemocional
que se esconde nessa negligência de cuidados à criança é algo muito grave. Na medida
em que elas reproduzem a realidade do adulto, elas passam a sofrer os mesmos
impactos. Um exemplo disso é a própria violência e o bullying. Geralmente, eles
são desdobramentos dos discursos e comportamentos que aquela criança presencia
entre pessoas mais próximas e ela traz para o seu contexto escolar.
Essa uma questão fundamental,
porque a adultização infantil não diz respeito só a uma classe ou segmento
social. Cada grupo traz um viés desse problema para a sua realidade e impacta
de maneira contundente o restante. Então, nesse espectro, a criança muito
exposta vai ter que lidar com sentimentos e comportamentos para os quais ela,
geralmente, ainda não está pronta. É por
isso que afloram nelas sintomas como ansiedade, Síndrome do Pânico, Transtornos
Alimentares, Depressão e, lamentavelmente, tentativas de suicídio.
Estamos sempre a dizer que as
crianças são o futuro; mas, se não somos capazes de protegê-las e respeitar-lhes
os direitos fundamentais, a que futuro estamos nos referindo? Quais as nossas expectativas
de futuro? Em um mundo que já vive sob uma atmosfera tão hostil, tão difícil de
enfrentar, as crianças parecem cada vez mais vulneráveis aos horrores criados
pela própria sociedade e não se trata apenas de questões de guerra bélica. A adultização
tem retirado delas o direito de construir e consolidar a sua identidade, porque
estão submetidas aos domínios das identidades de terceiros e, talvez, esteja
nisso uma explicação para que tantos jovens sintam-se perdidos, desorientados,
sem saber que caminho seguir. Por isso, independente se você tenha ou não filhos
pense que você vive em sociedade e desse modo, não lhe cabe, em nenhuma hipótese,
negar a sua responsabilidade cidadã com a infância; pelo menos, pensar a
respeito. O próximo dia 12/10 é feriado, então aproveite e assista ao documentário
“O começo da Vida” 5,
da diretora Estela Renner, com o apoio do UNICEF, e reveja os seus conceitos, teça
conexões e reflexões sobre o que acontece bem debaixo do seu nariz.