Só
mais um desafio para a Educação brasileira
Por
Alessandra Leles Rocha
A liquefação das relações, das ideologias, dos
comportamentos na teoria da pós-modernidade proposta por Zygmunt Bauman, talvez,
nos forneça elementos para compreender o que acontece bem debaixo do nosso próprio
nariz. De fato, o cotidiano parece estar determinado aos interesses, as
vontades, aos olhares extremamente individualistas, por isso o consenso se
encontra cada vez mais distanciado e menos favorecido de um denominador comum.
No entanto, apesar da realidade se apresentar dessa
forma, a sociedade não pode viver à deriva, à mercê de uma Babel social, onde
cada um defende seus pontos de vista e os faz prevalecer a todo custo. Foi em
nome de um porto seguro que as leis, os códigos e as doutrinas surgiram para
estabelecer parâmetros que pudessem conferir princípios à sociedade, de modo a
resguardá-la do peso de uma demasiada injustiça.
Mas, vez por outra, no afã de arbitrar adequadamente se
perde a noção da complexidade em que reside à própria coexistência humana. A
vida é um prisma de muitos lados. São muitas as variáveis que interferem e
mascaram os vieses de uma mesma questão. Foi essa a sensação percebida pela
sociedade brasileira diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, em
27/09/2017, sobre a compatibilidade de, embora vivermos sob um Estado laico, que
as escolas públicas devam ministrar aulas de ensino religioso de uma ou mais religiões
específicas.
Pois bem, muitos podem pensar que o ponto nevrálgico dessa
discussão é tão somente a religião; mas não é. Concordo que vivemos tempos
espinhosos, de uma intolerância desmedida, no qual a diversidade religiosa tem
estado em constante aflição, apesar da Constituição Federal de 1988 manifestar-se
clara no artigo 5º, incisos VI, VII e VIII 1.
O problema é como trazer a religião para o ambiente escolar sem fazer disso um
fomento para agravos de enorme projeção.
Ora, ninguém desconhece a realidade da escola pública
brasileira, dos inúmeros desafios que ela enfrenta diariamente para cumprir o
seu papel de educar. De problemas logísticos e de infraestrutura à carência de mão
de obra qualificada e melhores salários, os aspectos didático-pedagógicos
também se somam no momento de computarmos o baixo aproveitamento dos alunos, os
índices de evasão (tanto de docentes como de alunos), a violência, as limitações
no processo de acessibilidade e inclusão escolar, enfim.
Ano após ano, entre reportagens, pesquisas e estatísticas
o panorama nacional não acusa melhorias e avanços significativos diante dessas
demandas. O modelo vigente de escola não atende as necessidades da sociedade
atual, há um abismo secular na Educação nacional. Por isso, a escola pública
brasileira, na sua grande maioria, parece abandonada, sem futuro. Então, se não
temos sido capazes de enxergar o que acontece; talvez, a recente decisão do STF
possa ao menos nos despertar desse torpor.
Segundo a Suprema Corte, a decisão se amparou no fato de
considerar tal ensino como facultativo, ou seja, sem obrigar o aluno a
participar das aulas. Mas, isso não basta. Não basta porque não pensamos no
problema que essas escolas terão de enfrentar quanto às alternativas a serem propostas
aos alunos que não queiram assistir a aula de ensino religioso oferecida.
Quem vive a realidade da escola pública sabe bem que a carência
de professores já é um obstáculo no cumprimento da carga horária anual. Quando faltam
professores – e essa é uma constante por diversas razões, inclusive médicas - muitas
escolas são obrigadas a dispensar os alunos mais cedo ou, na melhor das hipóteses,
juntar as turmas, superlotando os espaços físicos já precários. Então, como
fazer com os alunos do ensino religioso que pretendam desfrutar do seu direito
de não assistir as aulas?
Basta um pouco de idade nas costas, para saber que jovens
sem nada para fazer dentro da escola acabam em problema. Sem saber o que fazer
com esses alunos, o tal ‘facultativo’ poderia acabar se transformando em estereótipo
de segregação, mais um estopim para casos de bullying. Mas, mais uma vez, a
grande parcela das nossas escolas públicas não têm profissionais capacitados
para trabalhar essas questões (psicólogos e assistentes sociais) e mitigar seus impactos. Não, infelizmente, também não podemos contar com a hipótese de uma aula de música, ou de arte, ou de robótica,
ou de informática, ou de idiomas... em lugar da aula de ensino religioso para
esses alunos.
Sem considerar o
fato de que na fragilidade orçamentária que vive a Educação nacional, as
escolas não poderiam contratar mais de um professor de ensino religioso, o que afunilaria
a construção identitária no âmbito da religião, fazendo com que prevalecessem
as religiões com maior número de seguidores no país. Se a religião é um traço
cultural importantíssimo na construção da sociedade, isso significaria um
retrocesso na oportunização da nossa própria diversidade. Com a realidade migratória
vigente, a qual o Brasil recebe refugiados de diversas nacionalidades, imagine como
eles se sentiriam nessa situação?
Além disso, a presença de uma única representação religiosa
na escola, não deixa de ser uma outorga de poder ideológico e de destaque para
o profissional que irá ministrar as aulas; afinal, não foram estabelecidas
diretrizes ou orientações para o processo de escolha da religião a ser
ministrada, o que parece arbitrário. Contar com o bom senso é simplista demais
e pode ocasionar problemas ainda maiores em longo prazo.
Enquanto, personalidades e lideranças mundo afora
reconhecem a importância do ecumenismo na construção de uma sociedade pacífica,
capaz de coexistir pela premissa da liberdade, da igualdade e da fraternidade
que respeitam a diversidade humana em todas as suas expressões, estamos diante de
mais um obstáculo para o país. Acabamos de perder uma excelente oportunidade de
fazer das nossas escolas verdadeiros celeiros de gente, de seres humanos que se
“imaginam partilhando o mundo” 2.
Como disse Martin Luther King, “A injustiça num lugar qualquer é uma
ameaça à justiça em todo o lugar”.
Infelizmente, a decisão do STF nos faz pensar em injustiça, quando amparados
pelas leis, códigos e doutrinas, nossos magistrados permitiram que a exclusão fizesse
parte da escola; afinal, haverá alunos que não se sentirão
contemplados, representados ali. Quem
quer ficar em um lugar assim, hein?!
Não nos esqueçamos do que disse Rubem Alves 3, “Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas.
Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo.
Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode
levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de
ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são
pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o
vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O
vôo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado”.
1 Inciso VI – é inviolável a liberdade
de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as
suas liturgias; Inciso VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência
religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; e, Inciso
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a
todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
2
Uma referência à canção Imagine, de
John Lennon.