SER, NÃO SER E
TODAS AS NOSSAS REVOLUÇÕES
Por Alessandra
Leles Rocha
Já alcançamos a 4ª Revolução Industrial 1, mas não a liberdade existencial que
reside na satisfação dos pequenos e mais simples gestos, na paz, nas gotas de
felicidade que salpicam sobre nosso amanhecer e anoitecer.
Os avanços, as
transformações, de fato atingiram diretamente o nosso modo de ser, pensar e
agir; mas, não o suficiente para alcançar aquilo que vai além dos meandros do
inconsciente e das emoções. Ao contrário do que tentam fazê-lo acreditar, o
incômodo não está no outro, está em você mesmo.
Vejamos, por exemplo, a obsessão de
milhares de pessoas em transformar a própria vida em reality show. Quem é pleno de si, vive sereno diante dos altos e
baixos do cotidiano, encara a vida de peito aberto, surfando as ondas que o dia
aprouver, não sofre a fissura de precisar expor a intimidade, como uma banca de
frutas na feira, não é mesmo?
As redes sociais estão cheias de
histórias nada reais, retocadas de acessórios fictícios, para vender uma
felicidade, que nem os melhores comerciais de margarina conseguiriam. Enquanto
transbordam seus excessos de sucesso, de riqueza, de luxo e afins, esses seres
humanos (porque embora não pareçam, continuam sendo humanos) transitam entre o
autoconvencimento e a competição com os outros.
Na mesma proporção que colecionam
cartões de crédito, sua autoafirmação social se exibe ainda mais através da internet,
onde são fieis frequentadores. Nesse mundo de ostentação e glória se dividem
entre alimentarem a curiosidade alheia e bisbilhotarem o restante. O que antes
fazia parte do universo das personalidades de revistas de fofocas, agora é
parte do cotidiano do cidadão comum, nada glamoroso.
Enquanto se esquece de SER, a humanidade
só se preocupa em TER. Em longo prazo uma frustração generalizada toma de
assalto o bem estar e a autoestima dos indivíduos, de modo que eles passam a se
agredir ou a agredir os demais. A necessidade em ser o “top trend” da vez, ou
bater os recordes de “curtidas”, ou verificar a inveja despertada através dos
comentários de seus posts, são alguns dos sinais visíveis de uma patologia
comportamental que se instalou na sociedade moderna.
Recordando o trabalho do
sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, sobre a Identidade no Mundo Globalizado, a
ansiedade e a audácia, o medo e a coragem, o desespero e a esperança nascem
juntos, mas é a proporção na qual elas se misturam é que depende dos recursos
de posse de cada um; e a modernidade é especialista em transformar uma coisa em
outra e essa capacidade presente nos seres humanos os fez compreender que
poderiam “realizar sem limites”, de acordo com a própria vontade.
Assim, Bauman coloca a
individualização na transformação da identidade humana a partir do que é ‘dado’
em uma ‘tarefa’, ou seja, a modernidade substitui a determinação de um padrão
social por uma autodeterminação compulsiva e obrigatória. Para ele, o problema
da identidade para homens e mulheres não é tanto como obter as identidades de
suas escolhas, mas com tê-las reconhecidas pelas pessoas ao redor; então, como
fazer a melhor escolha? Cria-se um círculo vicioso. Há uma dificuldade do ser
humano em resistir à tamanha tentação, que ao mesmo tempo em que aparenta a
conquista de poder e triunfo, gera frustração, medo e ansiedade.
Enquanto o ser humano se
deixa engolir pela própria criação, preocupado exacerbadamente com a imagem a
qual o mundo faz dele e a dele em relação ao mundo, a vida é dilapidada. Pessoas
estão morrendo. O planeta está se esfacelando. As relações humanas estão se
deteriorando. As riquezas estão se perdendo... Compramos a ideia da Revolução
Industrial sem ler as letras miúdas do rodapé. Resistir aos apelos dessa
realidade é, portanto, o grande desafio. Como escreveu William Shakespeare, no
Ato III, Cena I, de Hamlet:
Ser ou não
ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e flechas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provocações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer... Dormir: não mais.
Dizer que rematamos com um sono a angústia
E as mil pelejas naturais-herança do homem:
Morrer para dormir... é uma consumação
Que bem merece e desejamos com fervor.
Dormir... Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois quando livres do tumulto da existência,
No repouso da morte o sonho que tenhamos
Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.
Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
Toda a lancinação do mal prezado amor,
A insolência oficial, as dilações da lei,
Os doestos que dos nulos têm de suportar
O mérito paciente, quem o sofreria,
Quando alcançasse a mais perfeita quitação
Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos,
Gemendo e suando sob a vida fatigante,
Se o receio de alguma coisa após a morte,
–Essa região desconhecida cujas raias
Jamais viajante algum atravessou de volta –
Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?
O pensamento assim nos acovarda, e assim
É que se cobre a tez normal da decisão
Com o tom pálido e enfermo da melancolia;
E desde que nos prendam tais cogitações,
Empresas de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se de rumo e cessam até mesmo
De se chamar ação.[...]2
Em nosso espírito sofrer pedras e flechas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provocações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer... Dormir: não mais.
Dizer que rematamos com um sono a angústia
E as mil pelejas naturais-herança do homem:
Morrer para dormir... é uma consumação
Que bem merece e desejamos com fervor.
Dormir... Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois quando livres do tumulto da existência,
No repouso da morte o sonho que tenhamos
Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.
Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
Toda a lancinação do mal prezado amor,
A insolência oficial, as dilações da lei,
Os doestos que dos nulos têm de suportar
O mérito paciente, quem o sofreria,
Quando alcançasse a mais perfeita quitação
Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos,
Gemendo e suando sob a vida fatigante,
Se o receio de alguma coisa após a morte,
–Essa região desconhecida cujas raias
Jamais viajante algum atravessou de volta –
Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?
O pensamento assim nos acovarda, e assim
É que se cobre a tez normal da decisão
Com o tom pálido e enfermo da melancolia;
E desde que nos prendam tais cogitações,
Empresas de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se de rumo e cessam até mesmo
De se chamar ação.[...]2
Voltar a olhar para dentro de si, estabelecendo
os próprios limites e escolhas, é sempre a ruptura necessária para quem
pretende sobreviver as grandes metamorfoses do
mundo. Isso serve para príncipes e plebeus.
1 Uma revolução industrial é
caracterizada por mudanças abruptas e radicais, motivadas pela incorporação de
tecnologias, tendo desdobramentos nos âmbitos econômico, social e político. Há
um consenso sobre a ocorrência de três revoluções industriais. A primeira
deu-se entre 1760 e 1840, movida por tecnologias como máquinas a vapor e linhas
férreas. A segunda deu-se entre o final do século XIX e início do século XX,
tendo como principais inovações a eletricidade, a linha de montagem e a difusão
da produção em massa. A terceira, que se iniciou na década de 1960, rompeu com
paradigmas por meio do desenvolvimento de semicondutores e tecnologias como
mainframes, computadores pessoais e, mais tarde, nos anos 1990, a internet.
Porém, com um grande desenvolvimento e difusão de algumas das tecnologias da
terceira revolução industrial, assim como o advento e incorporação de outras
tecnologias, autores têm sugerido que, no começo do século XXI, teríamos dado
início a uma quarta revolução industrial. (TADEU; SANTOS, 2016, p.2) Disponível
em:
https://www.fdc.org.br/professoresepesquisa/nucleos/Documents/inovacao/digitalizacao/boletim_digitalizacao_fevereiro2016.pdf
2
Tradução de SILVA RAMOS, P. E. da. Hamlet Editora Abril, 1976.