ONTEM, HOJE... E O AMANHÃ?
Por Alessandra Leles Rocha
Ainda que a
história seja cíclica e promova a repetição de bons e maus hábitos, considero
que a reafirmação daquilo que manifesta o lado ruim e sombrio da humanidade é a
mais plena contradição da potencialidade racional humana.
Aprender com os
erros não é uma questão de virtude; mas, de uma lógica natural que permeia a
nossa capacidade racional e cognitiva. Então, não aprender ou, simplesmente, se
recusar a fazê-lo parece pura exaltação da deterioração de nossos princípios e
valores que querem manter-se na contramão do altruísmo, da generosidade e da
fraternidade humana.
Passadas pouco
mais de sete décadas do final da Segunda Guerra Mundial, talvez, seja mesmo
importante trazer a pauta de discussão e reflexão o que foram os horrores
daquele período; na medida em que a humanidade reaviva os mesmos discursos e práticas,
na tecitura de novos padrões de segregação, intolerância e violência;
sobretudo, no que diz respeito às crianças.
A guerra
construída pelos adultos tem como primeira linha de destruição a infância e a
juventude, antes mesmo que qualquer inimigo seja de fato atingido por balas de
canhão ou bombas de efeito mortal. O
primeiro efeito a que ela submete a sociedade é o esfacelamento da estrutura
familiar seja pelo recrutamento dos indivíduos para a luta armada, seja pela
fuga desesperada em busca de abrigo, seja pela matança (in) discriminada
daqueles que insistem em sobreviver à margem dos acontecimentos,... Portanto, se
estabelece o surgimento de uma geração de órfãos de guerra.
Centenas de
milhares de crianças pertencentes a ambos os lados do conflito ficam a mercê da
sorte e/ou da ajuda humanitária espalhada pelo mundo, numa tentativa de
reconstrução familiar seja através do reencontro com algum parente que
sobreviveu ao conflito, ou pela adoção por uma nova família.
No entanto,
muito além das marcas visíveis provocadas pela vivência em uma zona de conflito
bélico, são as marcas invisíveis e inconscientes as de maior poder de impacto
na desconstrução identitária dessas crianças. A violência da ruptura dos laços
afetivos existentes no campo familiar e sociocultural gera desdobramentos tanto
de ordem física quanto psicoemocionais, os quais podem nunca ser superados e
tornarem-se um entrave perene na qualidade de vida desses indivíduos. Afinal de
contas, espera-se que muitas delas consigam, apesar da tragicidade de suas
experiências de vida, alcançar a fase adulta.
Quando nos
deparamos com cerca de vinte e cinco mil e oitocentas crianças e adolescentes
desacompanhados ou separados de suas famílias, chegando à Itália por via
marítima em 2016, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF) 1, não podemos, então, deixar de
relembrar as duras páginas da história mundial. Vítimas das guerras e conflitos
armados, da fome e da miséria que assola muitos países, elas sofrem as
consequências do mais alto grau de desumanização que se pode pensar,
tornando-se alvos totalmente vulneráveis à xenofobia, à discriminação, à
marginalização e à exploração, como ocorreu durante a Segunda Guerra
Mundial.
A questão dos
refugiados ainda se aprofunda na medida em que muitos países, incluindo os
Estados Unidos da América, têm acirrado suas políticas contra a imigração, sob
o argumento de serem, na verdade, políticas de segurança contra o terrorismo.
Diante disso, a emissão de vistos e autorização de permanência legal aos
imigrantes tem sido dificultada cada vez mais pelas autoridades. Isso significa
que a permanência ilegal passa, a partir de agora, a sinalizar que muitas famílias constituídas nessas condições terão que
enfrentar a deportação dos pais e o consequente esfacelamento familiar; na
medida em que, filhos nascidos nesses países serão cidadãos locais e não serão
expulsos como os pais.
O que as
autoridades responsáveis por essas políticas migratórias não responderam até o
momento é como se responsabilizarão pelo bem estar dessas crianças e
adolescentes que são cidadãos do seu país? Se elas não se preocupam com o indivíduo
migrante, parece, também, não se preocuparem com seus próprios cidadãos. Essa é
uma questão muito séria não só do ponto de vista das questões jurídicas; mas,
sobremaneira, das reflexões que recaem sobre a dupla cidadania, o senso de
pertencimento, a identificação, a vivência e a participação política e social dessas
crianças e adolescentes. Segundo
relata Anne Frank, uma adolescente alemã de origem judaica, vítima do
Holocausto, em seu diário publicado depois da sua morte, em 1947: “A gente não
faz ideia de como mudou até que a mudança já tenha acontecido”. Portanto, não
estariam essas autoridades reescrevendo a mesma história já escrita durante a
Segunda Guerra Mundial? Não estaria o século XXI construindo uma nova legião de
órfãos da desumanidade?
De repente, é
como se a sociedade mundial tivesse se esquecido dos próprios compromissos que
assumiu publicamente, os novos alicerces ideológicos de um mundo menos bárbaro e
cruel. Alguém se lembra, por exemplo, da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH), adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de
1948 2, e/ou da Convenção sobre os Direitos
das Crianças, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 20 de
novembro de 1989 3? Então...
Isso
me faz lembrar as sábias palavras do psicanalista, educador, teólogo e escritor,
Rubem Alves, “Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas
porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno”. Pois é, palavras
em um pedaço de papel, na verdade, não significam muito. Temos tantas leis, códigos,
doutrinas, regras,... Mas, se nos falta à
consciência, o que adiantam? Não é o fato do registro formalizado a razão da
nossa obrigação ou não em fazer. São os nossos princípios éticos e morais os verdadeiros
faróis a iluminar os nossos atos. Depende da nossa vontade, do nosso mais íntimo
querer a transformação do mundo em um lugar de justiça e de paz.
Estamos sempre dizendo que as crianças são o futuro; mas, se as negligenciamos e as desrespeitamos tão acintosamente, o que esperar do amanhã? Se a resposta lhe incomodar, talvez, seja esse o momento de rever os seus conceitos e engajar-se na mudança; afinal, sempre é tempo.
Estamos sempre dizendo que as crianças são o futuro; mas, se as negligenciamos e as desrespeitamos tão acintosamente, o que esperar do amanhã? Se a resposta lhe incomodar, talvez, seja esse o momento de rever os seus conceitos e engajar-se na mudança; afinal, sempre é tempo.