Seletividade
do pensamento... Arbitrariedade do pensamento...
Por
Alessandra Leles Rocha
Em um mundo de profundos e
constantes acontecimentos, nem sempre eles se comunicam tão diretos como se
pode pensar. Não raras as vezes em que se processam, eles se escondem na
sutileza dos detalhes ou nas entrelinhas dos discursos; mas, nem por isso
deixam de ser menos avassaladores e cruéis. No entanto, a maioria nos passa
despercebida; inclusive, aqueles mais próximos de nós.
Sim, apesar de dotados de inteligência
e capacidade de pensamento e reflexão, nem todos os seres humanos fazem bom uso
dessa engenhosidade biológica. Olham; mas, não enxergam. Escutam; mas, não
ouvem. Leem; mas, não entendem. Verbalizam; mas, não falam. Enfim, distam de
uma boa conexão com o mundo que os cerca para abstrair os elementos estruturais
da sua compreensão e raciocínio lógico.
Há muitas razões para isso,
inclusive de ordem médica e psicológica; mas, quero me ater nesse momento, apenas
ao ponto de vista de certa “displicência seletiva”. Afinal de contas, é certo
de que a vida flui e dela nem tudo se pode aprender e apreender. Sendo assim,
aqui e ali vamos selecionando os interesses e dando a eles maior ou menor importância.
No entanto, mesmo tomando essa atitude
de priorizar, de repente é possível perceber que essa tal seletividade nos
deixa em uma situação bastante delicada, em relação à nossa compreensão da vida
e do mundo. Como se nossas opiniões passassem, então, a emergir de terrenos
rasos e inconsistentes, incapazes de se conectar de maneira mais ampla e
coerente com outros acontecimentos.
Assim, não é a toa que vemos
pessoas se horrorizarem, por exemplo, com a miséria e a pobreza na África subsaariana
e não se indignarem na mesma proporção com retratos semelhantes colhidos entre
a população miserável ainda existente no Brasil. Ou não conseguirem
correlacionar os elevados números da violência nacional com aqueles estampados
em zonas de guerra formalmente estabelecidas em outros países do mundo. ...Ora,
mas na medida em que o planeta é povoado por seres humanos, por que suas carências
e mazelas podem ser compreendidas de maneira tão distinta?
Os caminhos pelos quais os
problemas de cada lugar percorrem podem, sim, variar segundo a diversidade de
conjunturas presentes. Porém, o resultado final de cada um deles será sempre o
mesmo. Pode ser a fome. Pode ser a miséria. Pode ser a corrupção. Podem ser as
epidemias. Pode ser a violência. Pode ser... Ainda que cada ser humano seja
único, o dia a dia de todos impõe a necessidade da sobrevivência.
Então, essa distorção na nossa
compreensão se torna muito grave, muito perigosa. Ao tentarmos nos distanciar
da própria realidade, como se ela não existisse e só conseguíssemos perceber o
que não nos faz fronteira, estamos invisibilizando e negligenciando a importância
de nossas ações e comprometimento quanto a esses fatos. Contrariando a opinião
de muitos que gostariam de ver o mundo se transformar sozinho; ele depende dos
esforços de cada um de nós, de um arregaçar de mangas diário e repleto de consciência,
de reflexão.
Entretanto, não bastasse a
seletividade nesse contexto, a humanidade ainda enfrenta a arbitrariedade do
pensamento. Isso significa que milhares de pessoas se afirmam socialmente a
partir do exasperamento de suas convicções e ideologias, ou seja, o prisma da
verdade, ou do certo, ou do ideal, é unifocal. Não há compartilhamento,
discussão, negociação, ou busca por um denominador comum, tornando a vida uma
via de mão única.
Nesse caminho, a sociedade vai sendo
gradativamente conduzida ao seu próprio silenciamento; na medida em que passa a
se abster de analisar e discutir criticamente o seu cotidiano individual e
coletivo. Surge, então, um movimento de alienação travestido por milhares de
afazeres, de muita pressa, de muito virtualismo tecnológico,... o qual tende a
nos apartar de nós mesmos e da realidade; como se nos sentíssemos melhor por nos
rendermos ao chamado “efeito manada”, quando nos entregamos ao fluxo do pensamento,
das escolhas, dos desejos de um coletivo qualquer. E tudo é tão “sutil”, que mesmo
nessa situação de “obediência preestabelecida” continuamos acreditando em uma falsa
sensação de sermos convocados a interagir, a opinar, a decidir.
Portanto, é assim que
nossa identidade está sendo desconstruída. Estamos “desalfabetizando” nossa
capacidade intelectual e nos deixando a mercê das incertezas e devaneios que
venham bater à porta da nossa razão. Quanto mais seletivizamos o nosso
pensamento mais nos vulnerabilizamos pela arbitrariedade do pensamento. É, por
isso, que se torna tão fundamental acordar dessa letargia antes que tamanha
manipulação do inconsciente nos faça esquecer quem somos e o que é realmente
importante.