Dói...
Por Alessandra Leles Rocha
Ser humano que é ser
humano não é uma ilha. Gosta de se ver rodeado de gente, pertencendo ao meio, “aceito”
no contexto da opinião pública. Mas está aí o desafio. Primeiro, porque ninguém,
meu caro, é unanimidade. Segundo, porque ainda que você não tenha consciência disso,
a tal “aceitação” começa por você mesmo. Então...
Bom, decidi colocar no
papel essas reflexões depois de assistir a uma reportagem na TV, ontem à noite.
O número de adolescentes praticando automutilação tem aumentado drasticamente e
as consequências desse fenômeno são difíceis de mensurar. Como todo transtorno psíquico
a descoberta geralmente acontece quando algo sai do controle; mas, será que é
preciso chegar ao limite extremo para se perceber o que está acontecendo?
De saída, ninguém discorda
que a adolescência é uma fase de extrema complexidade e não há ‘receita de bolo’
para passar por ela. Num piscar de olhos, a biologia molecular entra em cena
com a efervescência dos hormônios e das transformações físicas e
comportamentais por eles provocadas e o ser humano se torna uma ‘metamorfose
ambulante’. Ri, chora, grita, dança, dorme... quase ao mesmo tempo e uma
insatisfação consigo e com o mundo rouba-lhe o sentido.
É complicado sentir-se bem, feliz, o centro
das atenções quando se está na adolescência. O mundo parece conspirar a todo
instante contra o equilíbrio natural das coisas e aquele ser, que nem é criança
e nem é adulto, se vê em pleno ‘olho do furacão’, tentando algum vestígio de
segurança que lhe ajude na construção da sua identidade. O adolescente, então, se
afasta dos seus ‘referenciais’ adultos (a família) e busca nos seus pares o seu
centro de convivência e suporte emocional; porém, seus amigos... também estão
vivendo a mesma experiência.
O resultado disso é que
o acirramento do estranhamento entre eles leva ao conflito, em muitos casos
permeados de crueldade e violência. Não é à toa, que o bullying é uma prática
mais presente nessa faixa etária, seja ele real ou virtual. Em plena zona de transição,
a adolescência não é uma etapa da vida que permita ao indivíduo exercer esse
papel de suporte e aconselhamento; pois, ele não está plenamente maduro e
consciente de sua identidade e seu papel social. De certa forma, essa ‘responsabilidade’
de se auto ajudarem recai sobre eles como um peso enorme e um motivo a mais
para ampliar os seus próprios dilemas.
Então, imagine você
carregar as suas dores e as dores do mundo, hein? Até mesmo os adolescentes
sabem, muito bem, que não há analgésico no mundo capaz de aliviar tamanha dor. E
como a mente humana é fértil em ideias, aqui e ali elas começam a aparecer para
tentar resolver ou, pelo menos, mitigar a questão. Só que entre tantas, muitas
como a automutilação nem deveriam ser cogitadas; pois, além de não resolver
nada arrastam o adolescente para um universo sombrio de solidão, o qual aprofunda
o seu sentimento de fragilidade e de impotência diante da vida.
Não se trata daquele
isolamento natural da adolescência, quando eles transformam o quarto no seu
quartel general e ficam ali remoendo suas paixonites. Estou falando da solidão
que transcende o olhar desses jovens, tornando-os apáticos e sofridos em tempo
integral. Vestem-se como se o inverno fosse à única estação climática capaz de
atender a realidade do seu sofrimento e esconder as marcas desferidas contra o próprio
corpo. Enquanto isso, o mundo parece não ver o que está acontecendo.
A automutilação é mais
um dos impactos que golpeiam as futuras gerações. O suicídio, a evasão escolar,
a falta de pró atividade em relação ao trabalho são outros fenômenos preocupantes
em relação aos jovens do século XXI. Apesar de toda a sua habilidade e competência
para lidar com as novas tecnologias, eles parecem totalmente perdidos quando o
assunto é o ser humano seja em relação a si e/ou aos outros. O que fazer diante
das suas necessidades, dos seus sonhos, das suas dúvidas,... Tudo parece
pressioná-los a limites insuportáveis.
Assim, esta reflexão
não se fundamenta apenas num sentimento de tristeza e pesar humanitários em
relação ao que vem acontecendo aos nossos jovens; mas, na análise do
negligenciamento social a que estamos submetendo a vida humana, na medida em
que não permitimos por razões diversas e absurdas o afloramento dos sonhos, das
potencialidades, das capacidades de milhões de indivíduos em formação.
O que está acontecendo
não está contido entre quatro paredes. Atinge o lar, a escola, a igreja,...
todos os lugares onde há seres humanos. Ele desnuda como a superficialização e
o esgarçamento das relações humanas está colocando em risco o que se esperar do
futuro. Ao darmos menos importância as demandas existencialistas do ser, estamos
comprometendo a salubridade física, psíquica e emocional de milhões de pessoas.
É o que aponta o documentário “O começo da vida”, da diretora Estela Renner,
baseado nas recentes descobertas da neurociência sobre a primeira infância, o
qual teve o apoio do Fundo das Nações
Unidas para a Infância (UNICEF).
Então, vejamos esse documentário,
quantas vezes forem necessárias, para entender de uma vez por todas o que está
debaixo de nosso nariz e é de certa forma, parte de nossa responsabilidade. E
se ainda não for suficiente, podemos complementar com algumas leituras, como
por exemplo, O Diário de Anne Frank ou o Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago.
Quem sabe ao final conseguiremos
compreender o significado do afeto, do amor, do olhar, do respeito, da
generosidade, da solidariedade, da comunhão, do companheirismo e de tantas
outras atitudes, que ao contrário de serem “piegas”, como dizem por aí, são os
verdadeiros pilares que nos mantêm de pé e andam fazendo muita falta para esses
jovens.