segunda-feira, 21 de novembro de 2016

"Já estou cheio de me sentir vazio. Meu corpo é quente e estou sentindo frio. Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber. Afinal, amar o próximo é tão demodé". Legião Urbana

Dói...


Por Alessandra Leles Rocha


Ser humano que é ser humano não é uma ilha. Gosta de se ver rodeado de gente, pertencendo ao meio, “aceito” no contexto da opinião pública. Mas está aí o desafio. Primeiro, porque ninguém, meu caro, é unanimidade. Segundo, porque ainda que você não tenha consciência disso, a tal “aceitação” começa por você mesmo. Então...
Bom, decidi colocar no papel essas reflexões depois de assistir a uma reportagem na TV, ontem à noite. O número de adolescentes praticando automutilação tem aumentado drasticamente e as consequências desse fenômeno são difíceis de mensurar. Como todo transtorno psíquico a descoberta geralmente acontece quando algo sai do controle; mas, será que é preciso chegar ao limite extremo para se perceber o que está acontecendo?
De saída, ninguém discorda que a adolescência é uma fase de extrema complexidade e não há ‘receita de bolo’ para passar por ela. Num piscar de olhos, a biologia molecular entra em cena com a efervescência dos hormônios e das transformações físicas e comportamentais por eles provocadas e o ser humano se torna uma ‘metamorfose ambulante’. Ri, chora, grita, dança, dorme... quase ao mesmo tempo e uma insatisfação consigo e com o mundo rouba-lhe o sentido.
 É complicado sentir-se bem, feliz, o centro das atenções quando se está na adolescência. O mundo parece conspirar a todo instante contra o equilíbrio natural das coisas e aquele ser, que nem é criança e nem é adulto, se vê em pleno ‘olho do furacão’, tentando algum vestígio de segurança que lhe ajude na construção da sua identidade. O adolescente, então, se afasta dos seus ‘referenciais’ adultos (a família) e busca nos seus pares o seu centro de convivência e suporte emocional; porém, seus amigos... também estão vivendo a mesma experiência.
O resultado disso é que o acirramento do estranhamento entre eles leva ao conflito, em muitos casos permeados de crueldade e violência. Não é à toa, que o bullying é uma prática mais presente nessa faixa etária, seja ele real ou virtual. Em plena zona de transição, a adolescência não é uma etapa da vida que permita ao indivíduo exercer esse papel de suporte e aconselhamento; pois, ele não está plenamente maduro e consciente de sua identidade e seu papel social. De certa forma, essa ‘responsabilidade’ de se auto ajudarem recai sobre eles como um peso enorme e um motivo a mais para ampliar os seus próprios dilemas.
Então, imagine você carregar as suas dores e as dores do mundo, hein? Até mesmo os adolescentes sabem, muito bem, que não há analgésico no mundo capaz de aliviar tamanha dor. E como a mente humana é fértil em ideias, aqui e ali elas começam a aparecer para tentar resolver ou, pelo menos, mitigar a questão. Só que entre tantas, muitas como a automutilação nem deveriam ser cogitadas; pois, além de não resolver nada arrastam o adolescente para um universo sombrio de solidão, o qual aprofunda o seu sentimento de fragilidade e de impotência diante da vida.
Não se trata daquele isolamento natural da adolescência, quando eles transformam o quarto no seu quartel general e ficam ali remoendo suas paixonites. Estou falando da solidão que transcende o olhar desses jovens, tornando-os apáticos e sofridos em tempo integral. Vestem-se como se o inverno fosse à única estação climática capaz de atender a realidade do seu sofrimento e esconder as marcas desferidas contra o próprio corpo. Enquanto isso, o mundo parece não ver o que está acontecendo.
A automutilação é mais um dos impactos que golpeiam as futuras gerações. O suicídio, a evasão escolar, a falta de pró atividade em relação ao trabalho são outros fenômenos preocupantes em relação aos jovens do século XXI. Apesar de toda a sua habilidade e competência para lidar com as novas tecnologias, eles parecem totalmente perdidos quando o assunto é o ser humano seja em relação a si e/ou aos outros. O que fazer diante das suas necessidades, dos seus sonhos, das suas dúvidas,... Tudo parece pressioná-los a limites insuportáveis.
Assim, esta reflexão não se fundamenta apenas num sentimento de tristeza e pesar humanitários em relação ao que vem acontecendo aos nossos jovens; mas, na análise do negligenciamento social a que estamos submetendo a vida humana, na medida em que não permitimos por razões diversas e absurdas o afloramento dos sonhos, das potencialidades, das capacidades de milhões de indivíduos em formação.  
O que está acontecendo não está contido entre quatro paredes. Atinge o lar, a escola, a igreja,... todos os lugares onde há seres humanos. Ele desnuda como a superficialização e o esgarçamento das relações humanas está colocando em risco o que se esperar do futuro. Ao darmos menos importância as demandas existencialistas do ser, estamos comprometendo a salubridade física, psíquica e emocional de milhões de pessoas. É o que aponta o documentário “O começo da vida”, da diretora Estela Renner, baseado nas recentes descobertas da neurociência sobre a primeira infância, o qual  teve o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
Então, vejamos esse documentário, quantas vezes forem necessárias, para entender de uma vez por todas o que está debaixo de nosso nariz e é de certa forma, parte de nossa responsabilidade. E se ainda não for suficiente, podemos complementar com algumas leituras, como por exemplo, O Diário de Anne Frank ou o Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago.  Quem sabe ao final conseguiremos compreender o significado do afeto, do amor, do olhar, do respeito, da generosidade, da solidariedade, da comunhão, do companheirismo e de tantas outras atitudes, que ao contrário de serem “piegas”, como dizem por aí, são os verdadeiros pilares que nos mantêm de pé e andam fazendo muita falta para esses jovens.