Flagelos previsíveis...
Flagelos evitáveis...
Por
Alessandra Leles Rocha
Se até a bem pouco tempo a
compreensão era de que o “uso do poder político e social, especialmente por
parte do Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões (gerando
condições de risco para alguns grupos ou setores da sociedade, em contextos de
desigualdade, em zonas de exclusão e violência, em condições de vida precárias,
por exemplo), quem pode permanecer vivo ou deve morrer” 1,
agora, a impressão que se tem é de que houve uma escalada ao ponto de ampliar
os grupos ou setores da sociedade atingidos.
Cada vez mais é preciso cuidado e
atenção, diante da dinâmica cotidiana, porque as relações sociais têm implicado
em um depósito impositivo da confiança de uns em relação aos outros, sem
quaisquer garantias quanto ao exercício ético e moral
das responsabilidades.
Parece existirem pretextos que
venham justificar, de antemão, os absurdos decorrentes de práxis sociais desvirtuadas
e anômalas, demonstrando a total ciência de que os desastrosos resultados irão
aparecer, em algum momento. Acontece que isso é inócuo. Já dizia Rui Barbosa
que “A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e
manifesta” 2.
Bem, mas se a população deseja
viver uma realidade onde a justiça prevaleça é preciso repensar seus conceitos
e suas decisões. O caso da contaminação pelo vírus HIV em seis pacientes
transplantados, no Rio de Janeiro, ou o caso das vítimas de erro em testes de DNA,
ou o novo episódio de apagão elétrico na cidade de São Paulo, que deixou mais
de 2 milhões de residências sem energia, por exemplo, não estão dissociados. O ponto
em comum que une esses episódios está no uso do poder político e social do
Estado, que gera ações e omissões de natureza irreparável e, em alguns casos,
letal.
Pois é, no turbilhão da vida contemporânea,
uma imensa maioria dos cidadãos se esquece dessa figura denominada Estado. Constituído
por agentes representativos da população, escolhidos através do voto, o Estado
tem nas mãos a organização político-administrativa daquele espaço geográfico, a
partir de escolhas e decisões tomadas, ao menos em tese, em nome do povo. De modo
que existe um acordo tácito de confiança entre a população e o Estado, no
sentido de garantir o fluxo equilibrado do cotidiano daquele lugar.
Entretanto, a teoria na prática é
outra! Está nas teias da historicidade brasileira um flagrante desvirtuamento ético
e moral no que diz respeito aos deveres e responsabilidades no âmbito das
relações sociais de poder. Uma conjuntura que se estabeleceu, quando o país nem
dispunha de uma participação popular ampla e efetiva; mas, que resistiu e
persistiu até os dias atuais, graças à manutenção das regalias e dos privilégios
dos herdeiros do poder. Razão pela qual, vira daqui e mexe dali, esbarra-se em
uma mistura indecorosa entre interesses públicos e privados.
Por trás desse movimento degenerado
estão, muitas vezes, crimes contra a administração pública, tais como o
peculato, a concussão, a prevaricação, a falsificação de papéis públicos, o emprego
irregular de verbas e rendas, o abuso de poder ou modificação/alteração não
autorizada de sistema de informações, os quais afetam direta ou indiretamente a
vida da população.
Mas, se o Estado não está zelando
pelos interesses e pelo bem-estar dos cidadãos, esses, também, não estão
zelando pelas suas escolhas representativas e o seu dever de fiscalizar suas
atividades. O que torna impossível não relembrar a seguinte citação de Umberto
Eco, “Justificar tragédias como ‘vontade divina’ tira da gente a
responsabilidade por nossas escolhas”; embora, isso não mude o curso da
história!
Assim, depois dessa breve
reflexão, tenhamos consciência de que “Somos responsáveis por aquilo que
fazemos, o que não fazemos e o que impedimos de ser feito” (Albert Camus),
porque “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória
não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir” (José
Saramago).