terça-feira, 9 de abril de 2024

O que os olhos não veem...


O que os olhos não veem...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há um dito popular que diz, “o que os olhos não veem, o coração não sente”. Para muitos pode parecer uma bobagem; mas, nunca essas palavras foram tão representativas para resumir a realidade brasileira.

Enquanto o burburinho social gira em torno das afrontas desferidas pelo multimilionário norte-americano, dono de uma popular rede social, a maioria das pessoas desconsidera o fato de que não há acaso ou coincidência na dinâmica da vida 1.

A ocorrência de ataques antidemocráticos transnacionais da ultradireita é um processo que se desenrola, não é de hoje. Equivocam-se os analistas quando atribuem ao ex-presidente dos EUA e atual candidato às eleições, por lá, a única razão de simpatia e devoção do ex-presidente brasileiro e de seus apoiadores ligados à Direita e seus matizes, mais ou menos radicais e extremistas.  

Puro jogo de cena! Eleger uma figura representativa, altamente midiática, para lançar os holofotes retira a atenção sobre a estrutura maior que envolve a luta expansionista antidemocrática da ultradireita. Apaga, de certa forma, a presença de outras personagens importantes nesse processo; bem como, o modus operandi empregado para tecitura do mesmo.

Quem diria! Foi necessário que um estrangeiro proferisse despautérios na sua rede social, para que uma gigantesca parcela da população brasileira percebesse a dimensão dos perigos que ameaçam à nossa soberania nacional. De repente, o país foi sumariamente apequenado pela vociferação, metodologicamente organizada, de um representante dessa ultradireita transnacional.

Bem, mas esse não é o ponto! Superada essa espuma tóxica, o que está abaixo é o que realmente importa. Detalhes não são apenas detalhes. Como em tantos outros momentos da realidade nacional, o velho hábito de fazer vistas grossas, de contemporizar demasiadamente, foi o passaporte necessário para que os valores democráticos nacionais fossem atacados novamente.

O silêncio permissivo do Congresso Nacional quanto às viagens internacionais de parlamentares do Legislativo Federal 2, por exemplo, deveria nos fazer pensar. Não só pelo uso de vultosos montantes de dinheiro público; mas, pelo fato de que, a partir de seus próprios recortes de midiatização, foram reveladas as intenções de depreciação e desmoralização das instituições e da Democracia nacional, a fim de instituir e propagar uma ideologia do medo, junto aos seus apoiadores e simpatizantes.

Entretanto, essa é a ponta do iceberg. Afinal, não se sabe exatamente o passo a passo desses parlamentares no curso dessas viagens. Em que foi, realmente, gasto os recursos públicos? Com quem, realmente, se encontraram? O que foi discutido e acordado? Houve algum tipo de plano ou estratégia de recrudescimento ideológico? O pouco que sabemos reflete o recente episódio que estampa os veículos de informação e comunicação.

Mas, não só isso. Muitos desses parlamentares têm sido vistos participando, já há algum tempo, de seminários e congressos promovidos pelo movimento da ultradireita transnacional. Sem contar que, do ponto de vista do Executivo federal, todos os caminhos do ex-presidente da República também o levavam exatamente aos EUA 3. Haja vista, por exemplo, a indicação de um general para a Apex, em Miami, e que, agora, é investigado pela Polícia Federal (PF) no inquérito que apura a venda ilegal das joias sauditas recebidas pelo ex-presidente 4.  

A terra do Tio Sam parece um território bastante confortável e inspirador aos membros da Direita e seus matizes; especialmente, os mais radicais e extremistas. Suposições infundadas de fraude no sistema eleitoral. Invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, a fim de impedir a ratificação do resultado eleitoral. A tentativa de cooptar as forças armadas para apoiar um golpe nas eleições. Enfim...

Portanto, não surpreende que os EUA tenham se tornado o ponto estratégico de convergência da ultradireita transnacional, na contemporaneidade. Das ideologias aos protocolos de ação, é de lá que partem as diretrizes, que depois serão organizadas, segundo os interesses e especificidades de cada lugar. Dessa forma, o movimento é constantemente retroalimentado, especialmente, pelas redes sociais.

Então, quando eles não estão vociferando nas mídias o seu caldo antidemocrático, anticidadão, antilegalista, o benefício permissivo da condescendência, que paira em muitos lugares, os leva a subir nos púlpitos e palanques para manter reativa a sua bolha de simpatizantes e apoiadores. Aliás, foi contando com esse cenário que os episódios de 12 de dezembro de 2022 5, 24 de dezembro de 2022 6 e 08 de janeiro de 2023 7 aconteceram, no Brasil.

Havia sim, entre eles, uma certeza de impunidade tolerante, transigente, indulgente.  O que depois não se cumpriu. Prevaleceram as leis, o Estado Democrático de Direito. As medidas cabíveis estão sendo tomadas 8. E é justamente por isso, que a Direita e seus matizes; especialmente, os mais radicais e extremistas, estão ávidos pela desestabilização do país, a partir do achincalhamento da soberania nacional.

Eric Hobsbawm afirmava que “Mito e invenção são essenciais à política de identidade pela qual grupos de pessoas, ao se definirem hoje por etnia, religião ou fronteiras nacionais passadas ou presentes, tentam encontrar alguma certeza em um mundo incerto e instável, dizendo: ‘Somos diferentes e melhores do que os Outros’”. Em síntese, isso significa que os inimigos da Democracia nacional não estão somente lá fora, estão aqui.

É fundamental entender que a contemporaneidade se desenvolve a partir de novas realidades, comportamentos, pensamentos, sentimentos, valores e regimes, os quais tendem a ressignificar a identidade nacional para que ela se adapte a eles. No entanto, não é possível inventar a história, modelá-la, recortá-la e ajustá-la, para caber e servir aos interesses de alguns.

Lamento; mas, apesar disso, é o senso de identidade nacional, de coletivo humano de nação, que corre perigo, nesse momento. Porque, ainda que massa de manobra de um projeto expansionista da ultradireita transnacional, são esses cidadãos brasileiros, muitos deles servidores públicos remunerados com dinheiro dos nossos impostos, a quem se deve responsabilizar e enquadrar, segundo a legislação nacional, com o máximo de urgência.

Afinal, se eles são capazes de representar o espectro político-partidário nacional, devem, também, ser capazes de assumir as consequências de seus atos, de suas omissões, de suas transgressões.  Em um Estado Democrático de Direito, como é o Brasil, todos os indivíduos estão sujeitos às mesmas leis, ao devido processo legal. Gostem eles ou não.