segunda-feira, 11 de março de 2024

Em tempos de guerra, quem diria termos que enfrentar uma guerra cultural!


Em tempos de guerra, quem diria termos que enfrentar uma guerra cultural!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Se engana quem pensa que a guerra cultural travada pela ultradireita, na contemporaneidade, se destaque pela velha práxis de banir 1 ou queimar livros. É claro que esse é um aspecto importante e merecedor de total atenção! Acontece que em tempos de alta tecnologia, de inovações como a Inteligência Artificial (I.A.), é esse o ponto que se deve refletir.

Lamento, mas esses são tempos em que a ingenuidade ou a credulidade voluntária não cabem. Dessa vez, os livros parecem mais “bois de piranha” do que qualquer outra coisa, quando o assunto é guerra cultural. A reflexão aqui, deve começar pelo fato de que os poderes, as influências, a formulação das leis, sempre foram estabelecidos e regulados pelos membros do topo da pirâmide social. Assim, a explosão tecnológica na sociedade contemporânea, também, é fruto desse grupo e surgiu para servir aos seus interesses, mais ou menos republicanos.

Portanto, é fácil entender a íntima relação que se estabelece entre a guerra cultural e o avanço tecnológico. Primeiro, porque há lacunas geracionais presentes na sociedade. Haja vista que o mundo caminha para o envelhecimento global. De modo que essa realidade implica em uma maior dificuldade dessas pessoas em desfrutar desses avanços tecnológicos; mas, também, de acompanhar o seu nível de inovação. O que significa uma parcela importante da população sendo alienada da informação, da construção do conhecimento, da discussão crítica-reflexiva.

Segundo, porque a tecnização implica necessariamente no fato de que o ser humano perde a sua serventia. Ainda que as gerações mais jovens sejam nativas digitais, isso não é garantia de que elas tenham seu espaço socioeconômico preservado, nesse novo cenário. No entanto, considerando que a sua formação educacional e intelectual se dá, basicamente, através da tecnologia, o seu acesso ao conhecimento está muito mais vulnerável à manipulação dos interesses daqueles que detém o poder. Portanto, eles também estão sujeitos à alienação da informação, da construção do conhecimento e da discussão crítica-reflexiva.

E é tão fácil perceber tudo isso! Basta observar como a pós-verdade e sua elaboração e modelação da opinião pública tem sido operacionalizada através de avalanches de Fake News. Mas, não para por aí. O esgarçamento dialógico que se vê amiúde é consequência não só da deterioração argumentativa; mas, do enviesamento tendencioso e oportunista das informações, dada a incapacidade de filtrar adequadamente o volume delas, que é dispersado pelas mídias sociais.

Sim, os seres humanos estão cada vez mais rasos cognitiva e intelectualmente. Já dizia Monteiro Lobato, “Quem mal lê, mal ouve, mal fala, mal vê”. Sem tempo e disposição para ler, para pensar, para analisar e para refletir, legiões de pessoas acabam abduzidas pelo chamado efeito manada. Algo que é perfeito para os propósitos de uma guerra cultural, como propõe a ultradireita contemporânea. Seus interesses, suas opiniões, suas escolhas, tudo fica condicionado a um rígido limite preestabelecido.  

Quem não ouviu falar, por exemplo, sobre a Escola sem Partido? Trata-se de um movimento político, objetivando uma agenda conservadora para a educação brasileira. E o que chamam de Ideologia de Gênero, hein? Que busca contestar enfaticamente o entendimento científico a respeito de que os gêneros são, na verdade, uma construção social. Discussões que, obviamente, são integradas à mesma linha dos livros, peças teatrais, exposições e quaisquer outras produções artísticas, ou do pensamento, tornados objetos de censura por serem considerados símbolos de valores não conservadores.

Isso é a guerra cultural, em curso! Vale ressaltar que a proibição, a censura, o impedimento, é só a espuma da questão, a ponta de um gigantesco iceberg. O cerne mesmo, diz respeito a uma possível desconstrução da criticidade cidadã, a partir do confronto com a realidade apresentada por meio das manifestações socioculturais. Esse é o ponto. Utiliza-se de todos os meios disponíveis, então, para impedir que a cultura desconstrua os esforços de alienação dominante da sociedade.

Inclusive, através dos recursos de doutrinação religiosa, os quais exercem profunda influência e apelo às emoções e às crenças pessoais. Ora, a cultura é sim, um espelho da realidade e, por essa razão, pode despertar certas tensões adormecidas nos indivíduos, certos questionamentos e certas indignações, que desfavorecem aos planos de poder de uns e outros, por aí. Daí a existência de um acirramento da guerra cultural, no Brasil.

A Direita e seus matizes, mais ou menos radicais e extremistas, vêm se colocado mais e mais afeitos a brigar contra as correntes do progresso global. Na verdade, se formos olhar os acontecimento com lupa, perceberemos que a guerra cultural, no país, diz muito das pretensões teocráticas que pairam sobre a sociedade brasileira, já há algumas décadas.

E essa é uma guerra conservadora, que pretende fazer o que for para resistir e impedir os avanços da evolução social, a fim de que o sistema de governança possa, de fato, agir política, comportamental, jurídica e policial através de princípios ideológicos determinados por uma religião dominante, no país.  Resta saber, se irão conseguir aglutinar a pluralidade religiosa existente, no Brasil, em uma só ideologia, em um só objetivo, capaz de sustentar essa ambição teocrática. Caso contrário, a própria guerra cultural estabelecida terá sido em vão.