A
mercantilização e a monetização da dignidade humana
Por Alessandra
Leles Rocha
De repente, me pareceu clara a
razão que leva a humanidade a ser tão displicente, diante da avassaladora tecnologização
contemporânea. Não se teme por uma substituição humana pelas máquinas, simplesmente,
porque a desumanidade já domina os indivíduos. E a questão é bem mais complexa
do que se possa imaginar!
O ser desumano é aquele que perde
a noção coletiva de espécie, que perde a capacidade de se colocar no lugar do
outro, entendendo suas angústias e pensando nas dimensões do seu sofrimento. De
modo que a desumanidade retira quaisquer possibilidades de garantir e de preservar
a dignidade do outro, transformando-o, arbitrariamente, em objeto.
Isso significa que sem alteridade,
o passo seguinte é, então, a objetificação, a coisificação humana. Um conceito
que se estabelece diretamente com a dinâmica dos poderes sociais. Basta que o indivíduo
se sinta ou entenda dotado da capacidade, ainda que mínima, de exercer alguma autoridade,
ou soberania, para deliberar, agir e mandar, sobre os demais, que a
objetificação se manifesta.
Daí a existência de uma
mercantilização da dor. Não entendeu?! Bem, as manifestações de poder, não
raras as vezes, excedem, exorbitam. O que no campo da desumanidade, da
indignidade e da objetificação promove dores e sofrimentos incomensuráveis, indefiníveis,
os quais acabam se tornando alvo de reparação, de desagravo, de retratação,
inclusive, na esfera jurídica. São as chamadas
indenizações.
No turbilhão do cotidiano, estou
certa de que pouca gente já se deu ao trabalho de pensar ou tecer reflexões a
respeito. Mas, deveriam! Esse mecanismo encontrado para, em tese, apaziguar as
relações sociais, na verdade, não atinge seus propósitos. Mercantilizar,
monetizar, aquilo que é da natureza da subjetividade humana, não só tende a
desqualificar e a menosprezar a dignidade do indivíduo, como não produz efeito educativo
ou punitivo sobre o ofensor.
Afinal, a sua percepção social é
balizada pelo poder capital. Aquele que exercita a desumanidade, a indignidade
e a objetificação acredita ser dotado de um poder absoluto, que o coloca acima
do bem e do mal, numa casta inatingível, repleta de regalias e de privilégios. Portanto,
sejam quais forem os seus desvios éticos e morais, as suas infrações, os seus
delitos, ele está sempre disposto a pagar, o que for, para não ser incomodado.
Traduzindo em miúdos, ele compra
a dor, o sofrimento, a perda, o silêncio, o constrangimento, a indignação, a
ira, como se o vil metal fosse o “pó de Pirlimpimpim” para apagar os
fatos, desconstruir a realidade. E esse pensamento só é possível, porque para essas
pessoas o outro é só um objeto, uma coisa, totalmente destituído da sua
condição humana. De modo que uma indenização parece mais do que suficiente,
considerando o caráter objetificante do eventual beneficiário.
Acontece que o capital não apaga
as memórias! Em geral, as indenizações acabam tendo um caráter propagador dos
sofrimentos, das angústias, do desgosto, da desolação. Como se elas dessem vida,
novamente, à materialidade dos acontecimentos nefastos. Afinal de contas, tudo aquilo
que atinge a subjetividade humana não pode ser reparado, compensado,
indenizado. Há marcas, vestígios, feridas, visíveis e/ou invisíveis, que são
irremediavelmente insuperáveis.
É por essas e por outras, que em tempos
contemporâneos tão socialmente insalubres, a urgência de tratar essas pautas é total.
Porque esse tipo de discussão não deixa
de se refletir, por exemplo, sobre o grau de “felicidade global”. Segundo o relatório
da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado por ocasião do Dia
Internacional da Felicidade, é interessante observar que as grandes economias
do planeta não figuram no top 10 da lista 1.
Pois é, parece que o dinheiro não é necessariamente a chave para a felicidade!
Tendo em vista de que essa
análise se baseia em seis fatores principais, ou seja, apoio social, renda,
saúde, liberdade, generosidade e ausência de corrupção, a síntese que se extrai
a respeito é de que precisamos cuidar mais e melhor das relações humanas. Nesse
sentido, entender o significado da humanidade, enquanto sentimento de bondade,
ou de compaixão, em relação aos semelhantes; sobretudo, os mais desfavorecidos,
é essencial.
É hora de um choque poético de
realidade, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade 2,
para tentar reencontrar o fio da nossa meada existencial. Há uma carência explícita
de humanidade no mundo! Diante da contínua sobreposição do TER sobre o SER, os indivíduos
esqueceram-se das prioridades. Nem tudo pode ser comprado. Nem tudo tem preço. Pensemos
a respeito!