segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Sobre metamorfoses, asas e pérolas ...


Sobre metamorfoses, asas e pérolas ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Durante um bom tempo da minha existência eu nutri pelo Ano Novo um sentimento quase poético. Não sei se para você; mas, para mim, cada novo ano chegava sempre emoldurado por uma aura de roupa nova, de casa nova, de brinquedo novo, ... aparentando perfeição, com um cheiro único e distinto, com milhares de encantos a revelar.  

Mas, eis que a experienciação da pandemia me fez rever os conceitos e as impressões. O mundo mudou e, por tabela, mudamos muito, também. De modo que as minhas percepções sobre a vida, o ser humano e os acontecimentos sofreram desconstruções e ganharam novas ressignificações, bem mais condizentes com a realidade do que com as idealizações poéticas.

De repente, ficou bastante claro que esse marco temporal, ao qual denominamos Ano Novo, não pode ser visto e compreendido como uma simples fotografia, porque ele é parte integrante e integrada de um filme, de uma história. O que significa que o soar das doze badaladas tem por objetivo um breve deslocamento de cena, a fim de dar continuidade ao roteiro em curso.

O que se viu, fez, realizou, planejou, em todas as cenas anteriores serve de impulso ao que ainda será encenado. Lições, aprendizados, vivências, experienciações, como queiram chamar, são, portanto, os fundamentos de construção dos sonhos, dos desejos, das expectativas, das projeções, para esse novo. Afinal, se a vida não se permite passar a limpo, ao menos, ela possibilita pequenos ajustes e adequações ao roteiro.

A chegada do novo ano, então, não é um game over; mas, a expressão do fluxo contínuo do tempo. Vamos seguir em frente pelas trilhas já desbravadas ou a se desbravar, construindo ou descontruindo, significando ou ressignificando, o que se colocar diante de nós. Novos anos são as metamorfoses de nós mesmos. Ninguém volta a ser larva ou lagarta; mas, as borboletas retornam sim, ao casulo, para substituir suas asas para voos maiores e mais altos.  

Talvez, por isso, o Ano Novo transpire e respire liberdade! Segundo Platão, “O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê...”. Pois é, somos a representação de mais de 16 bilhões de asas novas, aguardando os impulsos misteriosos da vida, para voar pela imensidão do tempo e do espaço, ainda que, em tese, definidos pelo recorte de 366 dias. Para alguns, uma longa jornada. Para outros, nem tanto. Mas, certamente, o bastante para desfrutar as aventuras e as desventuras de fazer parte desse mundo.

E por mais que se deseje voar além de quaisquer limites, em algum momento, eles se farão presentes. Haverá dias sem vento. Haverá dias de tempestade. Haverá dias de intenso calor. Haverá dias de pura preguiça. ... Afinal de contas, é no voar e no não voar que se desenvolve o novo ano. Por mais metas, estratégias, planejamentos, que se possa fazer, o novo nasce marcado pelas duas faces da moeda.

Ora, é preciso humildade para entender que nem tudo depende de nós. Nem tudo está em nossas mãos. Mas, nem por isso, o novo deixa de acontecer. Deixa de se fazer presente. Intenso. Profundo. Arrebatador. As borboletas não são iguais. Suas asas são diferentes. Seu voo é diferente. Seu espaço é diferente. E a sua diferença impõe um processo metamórfico, cujos resultados são diferentes. E essa é a beleza do novo!

De fato, a contemporaneidade tem elevado demais o sarrafo das expectativas e sufocado a raça humana a uma homogeneização das diferenças, extremamente cruel e perversa. Acontece que esse movimento vai na mais absoluta contramão de um ideal de Ano Novo! Se queremos o novo não podemos homogeneizar nada e nem ninguém. Muito pelo contrário! Metamorfose é que deve ser a palavra de ordem! Se assim não fosse, qual a razão de todo final de ano nos lançarmos a aguardar ansiosos pelo Ano Novo, hein?

Segundo James R. Sherman, “Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim” (Rejection, 1982). É o inédito, o insólito, o diferente, o singular, o excêntrico, o desconhecido, o que leva o ser humano a pacificar consigo mesmo as suas inquietudes. Essa eterna busca lhe proporciona uma nova chance existencial para lidar com suas imperfeições, desalinhos, desajustes, sendo o melhor possível dentro das possibilidades. E assim, se pode também fazer emergir um novo ano, um novo mundo, um novo senso social.

Que 2024 seja para você, individual e coletivamente, um ano para fazer valer a pena! Estamos diante de um ano 8, ou seja, o símbolo do infinito, o qual representa a eternidade, a divindade, a evolução, o amor e o equilíbrio entre o físico e o espiritual. Um ano de profundas metamorfoses positivas, de realizações, de tudo o que há de mais belo, mais puro e mais sagrado. Mas, lembre-se do que escreveu Rubem Alves, “Ostra feliz não faz pérola” 1. Para que 2024 seja um ano realmente novo, ele não deve perder o seu equilíbrio de luz e sombra e, nem tampouco, ficar esperando pelas condições ideais de voo para satisfazer as suas asas.