Sobre metamorfoses,
asas e pérolas ...
Por
Alessandra Leles Rocha
Durante um bom tempo da minha existência
eu nutri pelo Ano Novo um sentimento quase poético. Não sei se para você; mas,
para mim, cada novo ano chegava sempre emoldurado por uma aura de roupa nova, de
casa nova, de brinquedo novo, ... aparentando perfeição, com um cheiro único e
distinto, com milhares de encantos a revelar.
Mas, eis que a experienciação da
pandemia me fez rever os conceitos e as impressões. O mundo mudou e, por
tabela, mudamos muito, também. De modo que as minhas percepções sobre a vida, o
ser humano e os acontecimentos sofreram desconstruções e ganharam novas
ressignificações, bem mais condizentes com a realidade do que com as
idealizações poéticas.
De repente, ficou bastante claro
que esse marco temporal, ao qual denominamos Ano Novo, não pode ser visto e
compreendido como uma simples fotografia, porque ele é parte integrante e integrada
de um filme, de uma história. O que significa que o soar das doze badaladas tem
por objetivo um breve deslocamento de cena, a fim de dar continuidade ao
roteiro em curso.
O que se viu, fez, realizou,
planejou, em todas as cenas anteriores serve de impulso ao que ainda será
encenado. Lições, aprendizados, vivências, experienciações, como queiram chamar,
são, portanto, os fundamentos de construção dos sonhos, dos desejos, das
expectativas, das projeções, para esse novo. Afinal, se a vida não se permite
passar a limpo, ao menos, ela possibilita pequenos ajustes e adequações ao
roteiro.
A chegada do novo ano, então, não
é um game over; mas, a expressão do fluxo contínuo do tempo. Vamos seguir
em frente pelas trilhas já desbravadas ou a se desbravar, construindo ou
descontruindo, significando ou ressignificando, o que se colocar diante de nós.
Novos anos são as metamorfoses de nós mesmos. Ninguém volta a ser larva ou
lagarta; mas, as borboletas retornam sim, ao casulo, para substituir suas asas
para voos maiores e mais altos.
Talvez, por isso, o Ano Novo transpire
e respire liberdade! Segundo Platão, “O que faz andar o barco não é a vela
enfunada, mas o vento que não se vê...”. Pois é, somos a representação de mais
de 16 bilhões de asas novas, aguardando os impulsos misteriosos da vida, para
voar pela imensidão do tempo e do espaço, ainda que, em tese, definidos pelo
recorte de 366 dias. Para alguns, uma longa jornada. Para outros, nem tanto. Mas,
certamente, o bastante para desfrutar as aventuras e as desventuras de fazer
parte desse mundo.
E por mais que se deseje voar
além de quaisquer limites, em algum momento, eles se farão presentes. Haverá dias
sem vento. Haverá dias de tempestade. Haverá dias de intenso calor. Haverá dias
de pura preguiça. ... Afinal de contas, é no voar e no não voar que se desenvolve
o novo ano. Por mais metas, estratégias, planejamentos, que se possa fazer, o
novo nasce marcado pelas duas faces da moeda.
Ora, é preciso humildade para
entender que nem tudo depende de nós. Nem tudo está em nossas mãos. Mas, nem
por isso, o novo deixa de acontecer. Deixa de se fazer presente. Intenso. Profundo.
Arrebatador. As borboletas não são iguais. Suas asas são diferentes. Seu voo é
diferente. Seu espaço é diferente. E a sua diferença impõe um processo metamórfico,
cujos resultados são diferentes. E essa é a beleza do novo!
De fato, a contemporaneidade tem
elevado demais o sarrafo das expectativas e sufocado a raça humana a uma
homogeneização das diferenças, extremamente cruel e perversa. Acontece que esse
movimento vai na mais absoluta contramão de um ideal de Ano Novo! Se queremos o
novo não podemos homogeneizar nada e nem ninguém. Muito pelo contrário! Metamorfose
é que deve ser a palavra de ordem! Se assim não fosse, qual a razão de todo
final de ano nos lançarmos a aguardar ansiosos pelo Ano Novo, hein?
Segundo James R. Sherman, “Embora
ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar
agora e fazer um novo fim” (Rejection, 1982). É o inédito, o insólito, o
diferente, o singular, o excêntrico, o desconhecido, o que leva o ser humano a
pacificar consigo mesmo as suas inquietudes. Essa eterna busca lhe proporciona
uma nova chance existencial para lidar com suas imperfeições, desalinhos,
desajustes, sendo o melhor possível dentro das possibilidades. E assim, se pode
também fazer emergir um novo ano, um novo mundo, um novo senso social.
Que 2024 seja para você, individual
e coletivamente, um ano para fazer valer a pena! Estamos diante de um ano 8, ou
seja, o símbolo do infinito, o qual representa a eternidade, a divindade, a
evolução, o amor e o equilíbrio entre o físico e o espiritual. Um ano de profundas
metamorfoses positivas, de realizações, de tudo o que há de mais belo, mais
puro e mais sagrado. Mas, lembre-se do que escreveu Rubem Alves, “Ostra
feliz não faz pérola” 1. Para
que 2024 seja um ano realmente novo, ele não deve perder o seu equilíbrio de
luz e sombra e, nem tampouco, ficar esperando pelas condições ideais de voo
para satisfazer as suas asas.