domingo, 5 de fevereiro de 2023

Recuo estratégico ...


Recuo estratégico ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A notícia de que grupos de garimpeiros começam a abandonar voluntariamente as áreas yanomamis 1 é importante, mas não satisfaz plenamente. Recuos estratégicos, em uma área de floresta densa, como é o caso, podem significar desafios maiores mais adiante. Não nos esqueçamos de que o crime é sempre organizado!

De modo que o monitoramento dos garimpeiros não pode cessar; sobretudo, porque outros focos de garimpo ilegal, com contaminação das terras e águas da floresta, pelo mercúrio, podem surgir. O que tornaria o trabalho de recuperação ambiental prejudicado, pois a fonte dos agravos não teria sido interrompida.

Pois é, estamos diante do fruto amargo da ganância humana. Desde que a crise dos yanomamis veio à tona com mais força, há alguns anos, eu me coloquei a pensar no sentido que poderia existir nesse ciclo perverso que alimenta o luxo e o poder das elites.

Poucos são os que tecem considerações e reflexões a respeito do fato de que o ouro que garante a ostentação do status social, no Brasil e no mundo, é cravejado pelas piores misérias humanas; afinal de contas, por ele pessoas adoecem, morrem, roubam, matam, escravizam, sequestram.

E isso não é conjectura, nem força de expressão. Investigações dão conta de que a maior parte do ouro que movimenta a cadeia luxuosa global é sim, oriunda da ilegalidade 2. Talvez, isso explique a razão do silêncio daqueles que usufruem do ouro, diante de todas as discussões socioambientais a respeito. Até o momento, não vi nenhuma grande marca ligada ao mercado do ouro se posicionar contra as práxis criminosas recorrentes nas atividades de garimpo e, nem tampouco, a favor dos povos originários. É como se tentassem dissociar a existência do valioso mineral dessas discussões.

Já se ouve falar, por parte de algumas autoridades brasileiras, em propostas interessantes quanto ao processo de exploração mineral no país, sendo uma delas, a certificação a partir da pactuação estabelecida por uma série de protocolos de responsabilidade socioambiental. Isso daria não só uma diretriz contemporânea para o modelo de gestão mineral, como colocaria o país na dianteira do protagonismo global do setor.

No entanto, como já se viu acontecer com outras tentativas de certificação, sobre outros produtos, bens e serviços, o risco de fraudes e a fragilidade de fiscalização podem se tornar grandes obstáculos para a efetivação do processo e a garantia da sua credibilidade no mercado. De modo que a ideia não é ruim, muito pelo contrário; mas, precisa ser bem executada se quiser efetivamente cumprir seu papel.

Inclusive, porque ao se falar sobre o desmantelamento ocorrido na totalidade da gestão federal, nos últimos quatro anos, não se trata apenas da desestruturação ou desorganização funcional e material dos segmentos; mas, particularmente, dos efeitos deletérios que impactaram de maneira devastadora as crenças, os valores, os princípios e as convicções, de servidores e da própria população, comprometendo a solidez do exercício cidadão.

A tentativa de institucionalizar a ideia de uma terra de ninguém, descumpridora das leis e desafiante explícita da justiça, por exemplo, é que abriu caminho e consolidou as mais diversas práticas exploratórias ilegais na região da Floresta Amazônica. Pairava no ar a mais absoluta certeza de impunidade e de que o crime compensava porque não haveria obstáculos para impedi-lo.  

Por isso o cenário que se tem no momento precisa ser tratado com muita objetividade, responsabilidade e viabilidade de execução. Não só para alcançar os objetivos fundamentais e urgentes; mas, também, mostrar uma possibilidade real de execução e monitoramento.

Os planejamentos têm que ser estratégicos, pensados em curto, em médio e em longo prazo, para não incorrerem no seu abandono prematuro. Porque é exatamente isso o que fortalece o recrudescimento das práxis ilegais no campo da sustentabilidade socioambiental. Tudo precisa ser medido, pesado, analisado e projetado para suportar e resistir aos desafios do que pode ser ponderável e do imponderável.

Nesse sentido, analisando essa questão sob a ótica da dispersão dos garimpeiros, no momento, a prioridade principal me parece ser a retomada efetiva e consistente da fiscalização das fronteiras terrestres na Amazônia, tanto pela Polícia Federal (PF), nos postos legais, quanto pelos comandos regionais do Exército. Dessa forma se torna possível evitar o regresso de garimpeiros e outros agentes ilegais mais adiante, após o arrefecimento do clímax de crise, que culminou na debandada atual deles da região da Amazônia brasileira.

É através desse movimento consciente e responsável que as populações locais e os povos originários, especialmente os Yanomamis, se sentirão seguros para retomar a sua vida, segundo suas organizações sociais, costumes, línguas, crenças e tradições. Assim, consolidado o respeito nas suas mais diversas expressões humanas, se tornará possível reestabelecer uma ponte profícua de parcerias socioambientalmente sustentáveis para aquela região, e por consequência, para o país.  

Como escreveu Albert Schweitzer, “Vivemos em uma época perigosa. O homem domina a natureza antes que tenha aprendido a dominar a si mesmo”. Isso explica porque existir sobre pilares de sustentabilidade parece tão difícil, tão complexo, tão desafiador. Mas, justamente por isso, há de se insistir, persistir, e lutar sempre. Porque “Se você realmente acha que o meio ambiente é menos importante que a economia, tente segurar a respiração enquanto conta o seu dinheiro” (Guy McPherson 3). 



3 Cientista americano, professor emérito de Recursos Naturais e Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade do Arizona, EUA.

*Data original da postagem: 05/02/2023.

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