quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

O adoecimento humano sob lentes de aumento


O adoecimento humano sob lentes de aumento

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há tempos me incomoda a maneira como o mundo contemporâneo lida com as doenças, como se houvesse uma suficiência intrínseca nisso. Só que não. O ser humano adoece por uma causa específica. Um vírus. Uma bactéria. Um protozoário. Um verme. Um agente químico, radioativo ou ionizante. Enfim... Daí em diante, segue-se um curso de agudização ou cronificação da patologia, com desdobramentos e consequências diversas.

Acontece que há uma tendência, cada vez mais visível, de superficialização diagnóstica, como se fosse possível, realmente, analisar a doença pelo quadro por ela instalado no paciente. Como se ela tivesse surgido por geração espontânea. De modo que esse entendimento conduz a situação a um círculo vicioso, dada a insuficiência de respostas capazes de formular um tratamento, de fato, efetivo.

A verdade é que, por ser o Brasil ser um país gigante, de dimensões continentais notória, e de uma desigualdade geográfica gritante, muitos municípios são carentes de infraestrutura médico-hospitalar capaz de dar conta de uma investigação adequada e eficiente. Mas, não é apenas esse o ponto nevrálgico da questão. A resposta para eventuais questionamentos a respeito giram em torno do fato de que é muito oneroso investigar com a devida profundidade. Ora, mas não o fazer, também, é.

Simplesmente, porque a superficialização deixa o paciente em contato com a causa da doença, tornando quaisquer tratamentos inócuos e, em alguns casos, permitindo consequências ainda mais complexas e letais. É o que retratam alguns roteiros cinematográficos, inspirados em fatos reais, tais como, Erin Brockovich – Uma mulher de talento (2000)1 e Minamata (2020)2. Em que milhares de pessoas começam a manifestar doenças gravíssimas sem saber que a responsabilidade disso está sobre agentes contaminantes liberados por grandes conglomerados industriais.  

E como seria maravilhoso, se essa realidade estivesse apenas presente nos filmes. Infelizmente, em 2017, uma notícia publicada pela BBC News Brasil, alertava para o fato de que “Mais de 3 décadas após ‘Vale da Morte’, Cubatão volta a lutar contra alta na poluição” 3. Recapitulando as memórias de quando a “Fumaça preta e amarela saía das chaminés dia e noite. Na Vila Parisi, bairro residencial de baixa renda próximo a indústrias de petróleo, fertilizantes e metais, nasciam crianças com graves malformações nos membros e no sistema nervoso. Pelo menos 37 nasceram mortas devido a problemas como a anencefalia, a falta de cérebro”.

Mas, sem a devida repercussão social, a questão caiu no silêncio, na invisibilidade, e não reverberou por discussões devidamente profundas e contundentes. O que me leva a pensar em quantas outras não tenham tido o mesmo fim ou sequer tenham chegado ao conhecimento da opinião pública, além do próprio raio de ocorrência. Eis que hoje, então, me deparei com uma dessas manchetes, recém saída do forno midiático: “Entenda como denúncias levaram à CPI da Poluição Petroquímica, que apura casos de Tireoidite de Hashimoto na Zona Leste de SP” 4.

À revelia de uns e outros, por aí, a necessidade de uma investigação epidemiológica profunda a partir de aspectos poluentes emerge mais uma vez no mundo real. Segundo uma especialista, “os estudos apontam o aumento da incidência de casos de tireoidite crônica autoimune, conhecida por tireoidite de Hashimoto, e hipotireoidismo primário nas pessoas que vivem próximas ou no mesmo entorno de plantas de produção de derivados de petróleo. [...] que se as doenças não forem tratadas corretamente, elas podem causar sequelas ou levar ao coma”.

Embora seja extremamente triste constatar os impactos da Revolução Industrial sobre a saúde humana, cada caso que desponta para investigação epidemiológica é uma oportunidade de desconstrução dos velhos modelos sociais para algo, no mínimo, mitigador de efeitos nocivos e deletérios. É uma oportunidade de reeducação social quanto aos limites de desenvolvimento e salubridade toleráveis pela raça humana.  

Basta de tentar entender a doença a partir de si mesma, dos seus sintomas, das suas manifestações. Milhares se comportam de maneira semelhante, confundindo os diagnósticos, atrasando as terapêuticas. É preciso saber mais do paciente, onde ele vive? Que atividade profissional ele desenvolve? Que tipo de alimentação ele faz? Desfruta de rede de saneamento básico? Qual o trajeto ele executa para realizar suas atividades cotidianas? Qual o contato com ambientes naturais preservados? ...

Afinal, nenhum ser humano na contemporaneidade está isolado dentro de uma bolha, de um sistema milimetricamente controlado, para não se estabelecer uma correlação direta entre doença e poluição ambiental. Atmosférica. Hídrica. Do solo. Térmica. Sonora e visual. Luminosa. Radioativa 5. Por isso não é possível dissociar saúde/qualidade de vida da sustentabilidade ambiental. Quando se pensa e age no sentido da preservação e da utilização racional dos recursos naturais está implícita a conservação da salubridade, que é vital para a sobrevivência humana.

E mediante essa consciência é que se torna possível traçar um planejamento estratégico de prevenção e controle de doenças, otimizando recursos e evitando a exposição cíclica aos agentes causadores, a partir das investigações epidemiológicas. Afinal, é dessa forma que se consegue identificar a fonte de infecção, o modo de transmissão, os grupos expostos a maior risco, os fatores de risco, e demais características epidemiológicas existentes. Em pleno século XXI, é realmente inadmissível que se caminhe às cegas, quando o assunto é a manutenção da saúde humana, tendo tantas ferramentas e instrumentos disponíveis para cuidar, tratar e curar.