O
adoecimento humano sob lentes de aumento
Por
Alessandra Leles Rocha
Há tempos me incomoda a maneira
como o mundo contemporâneo lida com as doenças, como se houvesse uma suficiência
intrínseca nisso. Só que não. O ser humano adoece por uma causa específica. Um vírus.
Uma bactéria. Um protozoário. Um verme. Um agente químico, radioativo ou
ionizante. Enfim... Daí em diante, segue-se um curso de agudização ou
cronificação da patologia, com desdobramentos e consequências diversas.
Acontece que há uma tendência,
cada vez mais visível, de superficialização diagnóstica, como se fosse
possível, realmente, analisar a doença pelo quadro por ela instalado no
paciente. Como se ela tivesse surgido por geração espontânea. De modo que esse
entendimento conduz a situação a um círculo vicioso, dada a insuficiência de
respostas capazes de formular um tratamento, de fato, efetivo.
A verdade é que, por ser o Brasil
ser um país gigante, de dimensões continentais notória, e de uma desigualdade geográfica
gritante, muitos municípios são carentes de infraestrutura médico-hospitalar
capaz de dar conta de uma investigação adequada e eficiente. Mas, não é apenas
esse o ponto nevrálgico da questão. A resposta para eventuais questionamentos a
respeito giram em torno do fato de que é muito oneroso investigar com a devida
profundidade. Ora, mas não o fazer, também, é.
Simplesmente, porque a superficialização
deixa o paciente em contato com a causa da doença, tornando quaisquer
tratamentos inócuos e, em alguns casos, permitindo consequências ainda mais complexas
e letais. É o que retratam alguns roteiros cinematográficos, inspirados em
fatos reais, tais como, Erin Brockovich – Uma mulher de talento (2000)1 e Minamata (2020)2.
Em que milhares de pessoas começam a manifestar doenças gravíssimas sem saber
que a responsabilidade disso está sobre agentes contaminantes liberados por
grandes conglomerados industriais.
E como seria maravilhoso, se essa
realidade estivesse apenas presente nos filmes. Infelizmente, em 2017, uma
notícia publicada pela BBC News Brasil, alertava para o fato de que “Mais de 3 décadas após ‘Vale da Morte’,
Cubatão volta a lutar contra alta na poluição” 3.
Recapitulando as memórias de quando a “Fumaça
preta e amarela saía das chaminés dia e noite. Na Vila Parisi, bairro residencial
de baixa renda próximo a indústrias de petróleo, fertilizantes e metais, nasciam
crianças com graves malformações nos membros e no sistema nervoso. Pelo menos
37 nasceram mortas devido a problemas como a anencefalia, a falta de cérebro”.
Mas, sem a devida repercussão
social, a questão caiu no silêncio, na invisibilidade, e não reverberou por
discussões devidamente profundas e contundentes. O que me leva a pensar em
quantas outras não tenham tido o mesmo fim ou sequer tenham chegado ao
conhecimento da opinião pública, além do próprio raio de ocorrência. Eis que
hoje, então, me deparei com uma dessas manchetes, recém saída do forno
midiático: “Entenda como denúncias
levaram à CPI da Poluição Petroquímica, que apura casos de Tireoidite de
Hashimoto na Zona Leste de SP” 4.
À revelia de uns e outros, por
aí, a necessidade de uma investigação epidemiológica profunda a partir de
aspectos poluentes emerge mais uma vez no mundo real. Segundo uma especialista,
“os estudos apontam o aumento da incidência
de casos de tireoidite crônica autoimune, conhecida por tireoidite de
Hashimoto, e hipotireoidismo primário nas pessoas que vivem próximas ou no
mesmo entorno de plantas de produção de derivados de petróleo. [...] que se as
doenças não forem tratadas corretamente, elas podem causar sequelas ou levar ao
coma”.
Embora seja extremamente triste constatar
os impactos da Revolução Industrial sobre a saúde humana, cada caso que
desponta para investigação epidemiológica é uma oportunidade de desconstrução
dos velhos modelos sociais para algo, no mínimo, mitigador de efeitos nocivos e
deletérios. É uma oportunidade de reeducação social quanto aos limites de
desenvolvimento e salubridade toleráveis pela raça humana.
Basta de tentar entender a doença
a partir de si mesma, dos seus sintomas, das suas manifestações. Milhares se
comportam de maneira semelhante, confundindo os diagnósticos, atrasando as terapêuticas.
É preciso saber mais do paciente, onde ele vive? Que atividade profissional ele
desenvolve? Que tipo de alimentação ele faz? Desfruta de rede de saneamento básico?
Qual o trajeto ele executa para realizar suas atividades cotidianas? Qual o
contato com ambientes naturais preservados? ...
Afinal, nenhum ser humano na
contemporaneidade está isolado dentro de uma bolha, de um sistema
milimetricamente controlado, para não se estabelecer uma correlação direta
entre doença e poluição ambiental. Atmosférica. Hídrica. Do solo. Térmica.
Sonora e visual. Luminosa. Radioativa 5.
Por isso não é possível dissociar saúde/qualidade de vida da sustentabilidade
ambiental. Quando se pensa e age no sentido da preservação e da utilização
racional dos recursos naturais está implícita a conservação da salubridade, que
é vital para a sobrevivência humana.
E mediante essa consciência é que
se torna possível traçar um planejamento estratégico de prevenção e controle de
doenças, otimizando recursos e evitando a exposição cíclica aos agentes causadores,
a partir das investigações epidemiológicas. Afinal, é dessa forma que se
consegue identificar a fonte de infecção, o modo de transmissão, os grupos expostos
a maior risco, os fatores de risco, e demais características epidemiológicas existentes.
Em pleno século XXI, é realmente inadmissível que se caminhe às cegas, quando o
assunto é a manutenção da saúde humana, tendo tantas ferramentas e instrumentos
disponíveis para cuidar, tratar e curar.
3 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-39204054#:~:text=Na%20Vila%20Parisi%2C%20bairro%20residencial,anencefalia%2C%20a%20falta%20de%20c%C3%A9rebro.