terça-feira, 9 de agosto de 2022

Nada justifica...


Nada justifica...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Duas manchetes mais, entre outras tantas publicadas diariamente, trouxeram como personagem principal as armas de fogo, no Brasil, no dia de ontem.

“Campeão mundial de jiu-jitsu, Leandro Lo é baleado na cabeça durante show em clube da Zona Sul de SP” 1. “Amigos e família de motorista baleado após bater em carro de empresário repudiam morte e cobram justiça: ‘Sem chão’” 2.

Daí a necessidade de expandir a leitura dos fatos e trazer para um lugar de reflexão mais profundo. Afinal de contas, o aumento no número de armas de fogo, no Brasil, não é uma questão meramente estatística.

Ela representa, na verdade, a materialidade da intenção de matar. A opção pela aquisição de uma arma, portanto, coloca o cidadão do lado exato em que ele pretende ficar na sociedade, com base nos valores, crenças e princípios que ele quer manifestar. Simplesmente, porque ter uma arma, portar uma arma, significa a disposição voluntária de matar.

Já é provado, de várias formas, que armas não protegem. Quem tece essa narrativa quer se permitir acreditar num factoide. Haja vista todos os agentes de segurança mortos em ação de trabalho, portando uma arma.

Se ela protegesse, de fato, isso não aconteceria. A questão é que aquele que está armado, de algum modo, desconsidera que o outro também possa estar; embora, nem sempre isso seja verdade.

O pior é que, no Brasil, tenta-se amenizar os fatos e constituir um discurso, no mínimo, enviesado sobre esse fenômeno. Basta observar, daqui e dali, o burburinho sobre a expansão do contingente de pessoas com a licença para o porte de arma dentro da categoria CAC (caçador, atirador, colecionador), como se isso fosse algo que estivesse naturalmente incorporado à sociedade brasileira.

Ora, ora. De antemão devo esclarecer que isso significa que as armas de fogo não estão restritas às forças de segurança; mas, podem sim, estar também nas mãos de qualquer um que tenha interesse e condição econômica de adquiri-las.

Constituindo uma corrida armamentista bastante desigual, seja quantitativa ou qualitativamente. Nesse sentido, qualquer que seja a justificativa que se faça para o porte e uso de uma arma de fogo se torna pouco relevante, porque não exime do artefato a sua letalidade natural.

Além do fato de que, a lei n. º 5197, de 3 de janeiro de 1967 3, que trata da proteção à fauna, é bastante clara a respeito da caça no país. E isso ocorre, em razão de evitar prejuízos à biodiversidade nacional, por conta da caça clandestina de animais da fauna silvestre e de sua comercialização ilegal. A única exceção é o javali, por não ser espécie nativa, havendo permissão de abate para o seu controle.

Assim, todo esse contexto nos traz a terrível impressão de que os caçadores contemporâneos, no fundo, não passam de caçadores de gente, legitimados por uma interpretação tendenciosa da legislação.

De posse da licença de porte e uso, a arma nas mãos de uma pessoa pode ganhar qualquer intenção, não é mesmo? Porque entre o que está estabelecido no documento jurídico e a sua prática há um infinitude de possibilidades e de riscos a serem considerados.

Não nos deixemos enganar, a barbárie é uma face da essência humana! Sempre existiu e, infelizmente, tende a continuar existindo. No entanto, houve um tempo na história em que ela se deflagrava com certo grau de equidade, na medida em que as partes se digladiavam de posse dos mesmos artefatos e potenciais de força.

Mas, depois que surgiram as armas de fogo, a situação entrou em franco desequilíbrio e desalinhamento, estimulando um interesse cada vez maior dos indivíduos por elas. De tal modo que, na contemporaneidade, esse movimento explodiu os limites da civilidade, da dialogia, da coexistência humana.

As armas de fogo trouxeram à tona a irracionalidade contida ao longo da evolução, bastando qualquer mínimo pretexto para se colocarem em ação. Tornaram-se a grande representação do atalho imediatista e alçaram a vida a uma desimportância assustadora.

Pois é, o instinto de sobrevivência da espécie se perdeu na saga inglória do matar ou morrer! Até parece que a raça humana precisa de artifícios, assim, para construir seus infernos! Epidemias, eventos climáticos extremos, fome e miséria acachapante, ... a morte nos espreita o tempo todo! Então, que valentia é essa com uma arma na mão? Que poço de certeza você pensa desfrutar?

Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, “[...]Chegou um tempo em que não adianta morrer [...]” 4, nem tão pouco, fazer morrer. Uma, duas, três, milhares de armas nas mãos não significam nada no curso da história. Matam vidas. Matam sonhos. Matam esperanças. Matam amores. Matam amigos. Matam...

Mas, nem por isso, fazem do mundo um lugar melhor. Nem por isso, blindam os seres humanos das mazelas, dos sofrimentos, das tristezas, das penúrias. Não fazem ninguém mais belo, mais importante, mais especial. Apenas, matam...

Por isso, tenha sempre em mente que antes de ter ou não uma arma, de empunhá-la ou não, de dispará-la ou não, a vítima já morreu pela intenção. Porque não é o tiro em si o que mata; mas, o desejo de atirar, de ferir o outro, de eliminar o outro.

Isso explica as palavras de Albert Einstein, ou seja, “O mundo é um lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer”. Essa é a grande reflexão!