Nada
justifica...
Por
Alessandra Leles Rocha
Duas manchetes mais, entre outras
tantas publicadas diariamente, trouxeram como personagem principal as armas de
fogo, no Brasil, no dia de ontem.
“Campeão
mundial de jiu-jitsu, Leandro Lo é baleado na cabeça durante show em clube da
Zona Sul de SP” 1. “Amigos e família de
motorista baleado após bater em carro de empresário repudiam morte e cobram justiça:
‘Sem chão’” 2.
Daí a necessidade de expandir a
leitura dos fatos e trazer para um lugar de reflexão mais profundo. Afinal de
contas, o aumento no número de armas de fogo, no Brasil, não é uma questão meramente
estatística.
Ela representa, na verdade, a
materialidade da intenção de matar. A opção pela aquisição de uma arma,
portanto, coloca o cidadão do lado exato em que ele pretende ficar na
sociedade, com base nos valores, crenças e princípios que ele quer manifestar. Simplesmente,
porque ter uma arma, portar uma arma, significa a disposição voluntária de
matar.
Já é provado, de várias formas,
que armas não protegem. Quem tece essa narrativa quer se permitir acreditar num
factoide. Haja vista todos os agentes de segurança mortos em ação de trabalho,
portando uma arma.
Se ela protegesse, de fato, isso
não aconteceria. A questão é que aquele que está armado, de algum modo,
desconsidera que o outro também possa estar; embora, nem sempre isso seja
verdade.
O pior é que, no Brasil, tenta-se
amenizar os fatos e constituir um discurso, no mínimo, enviesado sobre esse fenômeno.
Basta observar, daqui e dali, o burburinho sobre a expansão do contingente de
pessoas com a licença para o porte de arma dentro da categoria CAC (caçador,
atirador, colecionador), como se isso fosse algo que estivesse naturalmente
incorporado à sociedade brasileira.
Ora, ora. De antemão devo
esclarecer que isso significa que as armas de fogo não estão restritas às
forças de segurança; mas, podem sim, estar também nas mãos de qualquer um que
tenha interesse e condição econômica de adquiri-las.
Constituindo uma corrida
armamentista bastante desigual, seja quantitativa ou qualitativamente. Nesse sentido,
qualquer que seja a justificativa que se faça para o porte e uso de uma arma de
fogo se torna pouco relevante, porque não exime do artefato a sua letalidade natural.
Além do fato de que, a lei n. º
5197, de 3 de janeiro de 1967 3, que
trata da proteção à fauna, é bastante clara a respeito da caça no país. E isso
ocorre, em razão de evitar prejuízos à biodiversidade nacional, por conta da
caça clandestina de animais da fauna silvestre e de sua comercialização ilegal.
A única exceção é o javali, por não ser espécie nativa, havendo permissão de abate
para o seu controle.
Assim, todo esse contexto nos
traz a terrível impressão de que os caçadores contemporâneos, no fundo, não
passam de caçadores de gente, legitimados por uma interpretação tendenciosa da
legislação.
De posse da licença de porte e uso,
a arma nas mãos de uma pessoa pode ganhar qualquer intenção, não é mesmo? Porque
entre o que está estabelecido no documento jurídico e a sua prática há um
infinitude de possibilidades e de riscos a serem considerados.
Não nos deixemos enganar, a barbárie
é uma face da essência humana! Sempre existiu e, infelizmente, tende a
continuar existindo. No entanto, houve um tempo na história em que ela se
deflagrava com certo grau de equidade, na medida em que as partes se
digladiavam de posse dos mesmos artefatos e potenciais de força.
Mas, depois que surgiram as armas
de fogo, a situação entrou em franco desequilíbrio e desalinhamento, estimulando
um interesse cada vez maior dos indivíduos por elas. De tal modo que, na contemporaneidade,
esse movimento explodiu os limites da civilidade, da dialogia, da coexistência humana.
As armas de fogo trouxeram à tona
a irracionalidade contida ao longo da evolução, bastando qualquer mínimo pretexto
para se colocarem em ação. Tornaram-se a grande representação do atalho
imediatista e alçaram a vida a uma desimportância assustadora.
Pois é, o instinto de sobrevivência
da espécie se perdeu na saga inglória do matar ou morrer! Até parece que a raça
humana precisa de artifícios, assim, para construir seus infernos! Epidemias, eventos
climáticos extremos, fome e miséria acachapante, ... a morte nos espreita o
tempo todo! Então, que valentia é essa com uma arma na mão? Que poço de certeza
você pensa desfrutar?
Como escreveu Carlos Drummond de
Andrade, “[...]Chegou um tempo em que não
adianta morrer [...]” 4, nem
tão pouco, fazer morrer. Uma, duas, três, milhares de armas nas mãos não
significam nada no curso da história. Matam vidas. Matam sonhos. Matam
esperanças. Matam amores. Matam amigos. Matam...
Mas, nem por isso, fazem do mundo
um lugar melhor. Nem por isso, blindam os seres humanos das mazelas, dos
sofrimentos, das tristezas, das penúrias. Não fazem ninguém mais belo, mais
importante, mais especial. Apenas, matam...
Por isso, tenha sempre em mente
que antes de ter ou não uma arma, de empunhá-la ou não, de dispará-la ou não, a
vítima já morreu pela intenção. Porque não é o tiro em si o que mata; mas, o
desejo de atirar, de ferir o outro, de eliminar o outro.
Isso explica as palavras de Albert Einstein, ou seja, “O mundo é um lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer”. Essa é a grande reflexão!
1 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/08/07/campeao-mundial-de-jiu-jitsu-leandro-lo-e-baleado-na-cabeca-durante-show-dentro-de-clube-da-zona-sul-de-sp.ghtml
2 https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2022/08/08/amigos-e-familia-de-motorista-baleado-apos-bater-em-carro-de-empresario-repudiam-morte-e-cobram-justica-sem-chao.ghtml
4 ANDRADE, C. D. Os ombros suportam o mundo. https://www.culturagenial.com/poema-os-ombros-suportam-o-mundo-de-carlos-drummond-de-andrade/