segunda-feira, 6 de junho de 2022

Abram as cortinas! A Cultura precisa se apresentar!


Abram as cortinas! A Cultura precisa se apresentar!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Parece que as conjunturas atuais do país estão se inspirando no velho Abelardo Barbosa, o Chacrinha; pois, como dizia ele, “Eu não vim para explicar, eu vim aqui para confundir”. Pois é ... Isso esclarece o porquê da realidade, no Brasil, ser sempre tão difícil de apurar. O cidadão acaba se perdendo em um labirinto de total desconectividade e confusão, que não diz nada para coisa nenhuma.

Partindo, então, desse ponto podemos tecer uma reflexão sobre os recentes casos envolvendo a própria cultura nacional, no que diz respeito aos acintosos cachês que alguns cantores andaram negociando para shows em municípios de pequeno porte 1. Sim, porque nada disso tem a ver com Cultura.

Essa explosão de “disse me disse” tem como cerne a tentativa de desqualificar a expressão artística brasileira e colocá-la no rol das desimportâncias sociais. E para isso, partem do princípio de que, diante de um cenário de mazelas crônicas, padecidas secularmente pela sociedade; sobretudo, nos seus perfis mais vulneráveis e desassistidos, uma notícia como essa repercute muito mal pela opinião pública, fazendo parecer de imediato que a Cultura é um “desperdício” de recursos que afronta os interesses da população.

Ora, mas o objetivo dessa reflexão é justamente separar o tal joio do trigo. Por quê? Porque temos que dissecar as coisas com isenção e bom senso. Primeiramente, “a cultura é um processo contínuo em que se acumulam conhecimentos e também práticas que resultam da interação social entre indivíduos”, de modo que “o homem é, portanto, um ser cultural e é a cultura que o permite adaptar-se aos diferentes ambientes” (COELHO; MESQUITA, 2013, p.27) 2.

Entretanto, olhe bem para o Brasil e veja se a grande massa populacional tem mesmo esse discernimento. Se ela consegue entender satisfatoriamente o que isso significa. Se ela sabe o que é Cultura. Se ela consegue enumerar as expressões culturais além do mais trivial, ou seja, rádio, TV ou música, por exemplo. Se ela percebe a Cultura como algo importante na própria vida.

Portanto, permitir-lhe, sem distinção de qualquer natureza, o acesso pleno e constante às manifestações artístico culturais é fundamental. É desse movimento que a indústria cultural sobrevive e se perpetua ao longo das gerações, na medida em que é do próprio público espectador que emerge a própria classe artística e toda a sua cadeia de profissionais capazes de fazer do sonho do espetáculo uma realidade.

É pelo encantamento da experiência que há o despertar o cultural, que não se resume a cultura pela cultura; mas, se expande pela construção de uma diversidade identitária profissional e educacional. A Cultura se insere, então, no cenário da Economia Criativa, ou seja, “às dinâmicas culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de criação, produção, distribuição/circulação/difusão e consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos. Ou seja, a economia criativa lida com atividades pautadas na criatividade, em ideias, na inovação, no talento, no conhecimento e na imaginação” 3.

Sim, porque se a cultura é um dos pilares da educação e da formação intelectual cidadã, ela faz com que a economia criativa seja “uma opção viável e uma estratégia de desenvolvimento orientada à inclusão social, diversidade cultural e desenvolvimento humano”, ou seja, “altamente transformadora em termos de geração de renda, criação de empregos e receitas de exportação” 4. Pense na Literatura. Teatro. Artes plásticas e visuais. Música. Cinema. Dança. Arquitetura. Maquiagem. Figurino. Cenografia. ...

Mas, tudo isso é só uma base teórica, quando se olha para o Brasil. A grande maioria se esquece de que há milhões de brasileiros que jamais tiveram acesso à cultura nesse país e, talvez, jamais tenham. Seja por mera questão geográfica, onde municípios, especialmente aqueles bem pequenos, que nem aparecem nos mapas, vivem uma realidade de inacessibilidade total e/ou de enviesamento cultural em razão do seu status socioeconômico. Seja pela insuficiência ou carência de infraestrutura urbana – eletricidade, internet, bibliotecas, anfiteatros e/ou teatros, salas de cinema, por exemplo – que não permite a instalação e a apropriação da cultura nesses locais.

Assim, se estabelece no inconsciente coletivo de grande parte da população brasileira que a Cultura é “coisa de cidade grande”, é cara, é uma benesse acessível a poucos, ou seja, ela é elitista e elitizante. O que significa que a estes, aos demais, à grande massa, restam as migalhas, as esmolas, que vez por outra são aspergidas à custa do erário, quase que na condição de uma escolha perversa: cultura ou saneamento básico, cultura ou rua asfaltada, cultura ou creche, cultura ou escola, cultura ou ... E como é tão raro, tão esporádico, tão difícil, a população acaba induzida a se render aos encantos da novidade.

Simplesmente, porque ao contrário de ser vista e tida como parte da gestão pública, do direito constitucional (art. 215 e 216 da CF, de 1988), ela pareceu ser mais rentável politicamente pelo viés do “pão e circo” (Panem et circenses), como faziam os líderes romanos para angariar apoio e obediência da população.

Dessa forma, ela não vem para cumprir seu papel educativo, crítico, reflexivo, formador da cidadania. Ela vem na eventualidade de quem recebe gota a gota, como agrado politiqueiro, como instrumento alienador, como cabresto da subjetividade humana.

Pois é, os recentes casos envolvendo acintosos cachês, que alguns cantores trataram para fazer shows em municípios de pequeno porte, só fizeram levantar discussões sobre o mau uso do dinheiro público, sobre má gestão, sobre imoralidade, sobre corrupção, sobre falta de transparência, as quais são sim, questões seríssimas; mas, não disseram nada sobre a Cultura nacional, não conseguiram descortinar os entraves históricos que a emperram.

Enquanto, todo o entrevero ficou na base restrita do “dinheiro público”, não vi, uma viva alma sequer,  se perguntando por que “o Estado não garante a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e não apoia e incentiva a valorização e a difusão das manifestações culturais” 5, hein? Afinal, essa é a questão.

É nela que estão imersos todos os debates e reflexões jurídicas, éticas e morais em torno da Cultura nacional. Tendo em vista que, segundo a Constituição Federal de 1988, o país dispõe de um Sistema Nacional de Cultura fundamentado na política nacional de cultura e nas suas diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de Cultura. E onde está esse Plano? O que ele diz?

Segundo o escritor e psiquiatra português, António Lobo Antunes, “A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos”. Então, aproveitando a efervescência eleitoral, nada mais oportuno, do que discutir os rumos da nossa Cultura. Saber mais e melhor sobre ela. Sem “disse me disse”. Sem confusão desnecessária.



2 COELHO, L. P.; MESQUITA, D. P. C. de. Língua, Cultura e Identidade: Conceitos intrínsecos e interdependentes. Entreletras, Araguaína/TO, v.4, n.1, p.24-34, jan./jul. 2013.

4 Idem 3.

5 CF, 1988 – art. 215.