Abram
as cortinas! A Cultura precisa se apresentar!
Por
Alessandra Leles Rocha
Parece que as conjunturas atuais
do país estão se inspirando no velho Abelardo Barbosa, o Chacrinha; pois, como
dizia ele, “Eu não vim para explicar, eu
vim aqui para confundir”. Pois é ... Isso esclarece o porquê da realidade,
no Brasil, ser sempre tão difícil de apurar. O cidadão acaba se perdendo em um
labirinto de total desconectividade e confusão, que não diz nada para coisa nenhuma.
Partindo, então, desse ponto
podemos tecer uma reflexão sobre os recentes casos envolvendo a própria cultura
nacional, no que diz respeito aos acintosos cachês que alguns cantores andaram
negociando para shows em municípios de pequeno porte 1.
Sim, porque nada disso tem a ver com Cultura.
Essa explosão de “disse me disse” tem como cerne a
tentativa de desqualificar a expressão artística brasileira e colocá-la no rol
das desimportâncias sociais. E para isso, partem do princípio de que, diante de
um cenário de mazelas crônicas, padecidas secularmente pela sociedade;
sobretudo, nos seus perfis mais vulneráveis e desassistidos, uma notícia como
essa repercute muito mal pela opinião pública, fazendo parecer de imediato que
a Cultura é um “desperdício” de
recursos que afronta os interesses da população.
Ora, mas o objetivo dessa
reflexão é justamente separar o tal joio do trigo. Por quê? Porque temos que
dissecar as coisas com isenção e bom senso. Primeiramente, “a cultura é um processo contínuo em que se acumulam conhecimentos e
também práticas que resultam da interação social entre indivíduos”, de modo que
“o homem é, portanto, um ser cultural e é a cultura que o permite adaptar-se
aos diferentes ambientes” (COELHO; MESQUITA, 2013, p.27) 2.
Entretanto, olhe bem para o
Brasil e veja se a grande massa populacional tem mesmo esse discernimento. Se ela
consegue entender satisfatoriamente o que isso significa. Se ela sabe o que é
Cultura. Se ela consegue enumerar as expressões culturais além do mais trivial,
ou seja, rádio, TV ou música, por exemplo. Se ela percebe a Cultura como algo
importante na própria vida.
Portanto, permitir-lhe, sem
distinção de qualquer natureza, o acesso pleno e constante às manifestações artístico
culturais é fundamental. É desse movimento que a indústria cultural sobrevive e
se perpetua ao longo das gerações, na medida em que é do próprio público espectador
que emerge a própria classe artística e toda a sua cadeia de profissionais capazes
de fazer do sonho do espetáculo uma realidade.
É pelo encantamento da experiência
que há o despertar o cultural, que não se resume a cultura pela cultura; mas,
se expande pela construção de uma diversidade identitária profissional e
educacional. A Cultura se insere, então, no cenário da Economia Criativa, ou
seja, “às dinâmicas culturais, sociais e econômicas
construídas a partir do ciclo de criação, produção,
distribuição/circulação/difusão e consumo/fruição de bens e serviços oriundos
dos setores criativos. Ou seja, a economia criativa lida com atividades
pautadas na criatividade, em ideias, na inovação, no talento, no conhecimento e
na imaginação” 3.
Sim, porque se a cultura é um dos
pilares da educação e da formação intelectual cidadã, ela faz com que a
economia criativa seja “uma opção viável
e uma estratégia de desenvolvimento orientada à inclusão social, diversidade
cultural e desenvolvimento humano”, ou seja, “altamente transformadora em termos de geração de renda, criação de
empregos e receitas de exportação” 4. Pense
na Literatura. Teatro. Artes plásticas e visuais. Música. Cinema. Dança.
Arquitetura. Maquiagem. Figurino. Cenografia. ...
Mas, tudo isso é só uma base
teórica, quando se olha para o Brasil. A grande maioria se esquece de que há
milhões de brasileiros que jamais tiveram acesso à cultura nesse país e,
talvez, jamais tenham. Seja por mera questão geográfica, onde municípios, especialmente
aqueles bem pequenos, que nem aparecem nos mapas, vivem uma realidade de
inacessibilidade total e/ou de enviesamento cultural em razão do seu status socioeconômico.
Seja pela insuficiência ou carência de infraestrutura urbana – eletricidade, internet,
bibliotecas, anfiteatros e/ou teatros, salas de cinema, por exemplo – que não
permite a instalação e a apropriação da cultura nesses locais.
Assim, se estabelece no
inconsciente coletivo de grande parte da população brasileira que a Cultura é “coisa
de cidade grande”, é cara, é uma benesse acessível a poucos, ou seja, ela é
elitista e elitizante. O que significa que a estes, aos demais, à grande massa,
restam as migalhas, as esmolas, que vez por outra são aspergidas à custa do
erário, quase que na condição de uma escolha perversa: cultura ou saneamento básico,
cultura ou rua asfaltada, cultura ou creche, cultura ou escola, cultura ou ... E
como é tão raro, tão esporádico, tão difícil, a população acaba induzida a se
render aos encantos da novidade.
Simplesmente, porque ao contrário
de ser vista e tida como parte da gestão pública, do direito constitucional
(art. 215 e 216 da CF, de 1988), ela pareceu ser mais rentável politicamente
pelo viés do “pão e circo” (Panem et circenses), como faziam os
líderes romanos para angariar apoio e obediência da população.
Dessa forma, ela não vem para
cumprir seu papel educativo, crítico, reflexivo, formador da cidadania. Ela vem
na eventualidade de quem recebe gota a gota, como agrado politiqueiro, como
instrumento alienador, como cabresto da subjetividade humana.
Pois é, os recentes casos
envolvendo acintosos cachês, que alguns cantores trataram para fazer shows em municípios
de pequeno porte, só fizeram levantar discussões sobre o mau uso do dinheiro
público, sobre má gestão, sobre imoralidade, sobre corrupção, sobre falta de transparência,
as quais são sim, questões seríssimas; mas, não disseram nada sobre a Cultura nacional,
não conseguiram descortinar os entraves históricos que a emperram.
Enquanto, todo o entrevero ficou
na base restrita do “dinheiro público”,
não vi, uma viva alma sequer, se
perguntando por que “o Estado não garante
a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e não apoia e incentiva a valorização e a difusão das manifestações
culturais” 5, hein? Afinal, essa
é a questão.
É nela que estão imersos todos os
debates e reflexões jurídicas, éticas e morais em torno da Cultura nacional. Tendo
em vista que, segundo a Constituição Federal de 1988, o país dispõe de um Sistema
Nacional de Cultura fundamentado na política nacional de cultura e nas suas
diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de Cultura. E onde está esse Plano?
O que ele diz?
Segundo o escritor e psiquiatra
português, António Lobo Antunes, “A
cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê
nunca será um povo de escravos”. Então, aproveitando a efervescência
eleitoral, nada mais oportuno, do que discutir os rumos da nossa Cultura. Saber
mais e melhor sobre ela. Sem “disse me
disse”. Sem confusão desnecessária.
1 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/06/cpi-do-sertanejo-veja-quais-sao-as-29-cidades-com-shows-investigados-pelo-mp.shtml
2
COELHO, L. P.; MESQUITA, D. P. C. de. Língua, Cultura e Identidade: Conceitos
intrínsecos e interdependentes. Entreletras,
Araguaína/TO, v.4, n.1, p.24-34, jan./jul. 2013.
4 Idem 3.
5 CF, 1988 – art. 215.