Povos
originários. Cidadãos brasileiros.
Por
Alessandra Leles Rocha
Imagine chegar em casa e
encontrar tudo destruído e revirado. Descobrir que objetos e memórias
importantes foram sumariamente pilhados. Que pessoas da sua mais alta estima,
presentes no local, foram agredidas violentamente e de diferentes maneiras.
Como você reagiria? Como você se sentiria?
Apesar de impactante, essa
proposta hipotética não foge, tanto assim, das vias possíveis de acontecer. Não,
porque vivemos os tempos das mais profundas incertezas contemporâneas; mas,
porque, entre os seres humanos, essas práxis foram institucionalizadas há
tempos.
Mas, o que me faz propor essa
reflexão é o fato de que, talvez, nesse exato momento, em algum lugar da
Floresta Amazônica, uma comunidade de povos originários do país esteja sentindo
na pele as consequências de uma situação como a que foi colocada acima.
A questão é que diferentemente
das repercussões que isso desencadeia em relação ao homem branco, quando o
protagonista da história é o indígena, o silêncio, a negação e a inviabilização
dos acontecimentos preenche os espaços para impedir quaisquer reflexões ou
discussões a respeito.
O estranhamente curioso nessa
história é que, do ponto de vista jurídico-normativo, não há em quaisquer
registros documentais a presença de uma definição categorizada ou
individualizada em relação ao ser humano. Seres humanos são seres humanos e
ponto final. Não se atribuem direitos e deveres segundo a cor da pele, da
etnia, do gênero, da idade, da escolaridade, da religião, disso ou daquilo. Todos
são vistos e entendidos apenas como seres humanos. Todos pertencentes a espécie
Homo sapiens.
Portanto, o que persiste e
resiste, no Brasil, no sentido das relações sociais entre os seus cidadãos
contraria e violenta não só o espírito humano, que deveria habitar e guiar cada
indivíduo no mais profundo do seu ser, em termos de empatia, de fraternidade,
de respeito; mas, especialmente, as leis e as normas que regem a sociedade
brasileira.
Se o curso da história do Brasil
se mostrou sádica e perversa com os seus povos originários, matando-os,
dizimando-os, escravizando-os, aculturando-os, durante séculos, pouco mais de
500 anos desconstrói a justificativa de uma insuficiência temporal para a
efetivação de transformações profundas a esse respeito.
De modo que essa desculpa
esfarrapada “não cola”. Não se trata de tempo. O ponto nevrálgico dessa relação
é a fundamentação ou a ideologização pautada no Colonialismo. Sobretudo, na
divisão social estabelecida entre dominados e dominadores, a qual permitia que
os propósitos econômicos alicerçados na prática da exploração de riquezas e
bens, existentes na Colônia, pudessem ser alcançados sem grandes obstáculos ou
entraves.
Sendo assim, o tempo pode ter
passado, o Colonialismo na sua concepção original pode ter acabado; mas, os
interesses econômicos vieram sendo reformulados a fim de conquistar um espaço
cada vez mais importante para a humanidade. A velha máxima do “dinheiro chamando dinheiro”.
Dentro desse contexto, então, a
presença de povos originários nas áreas nativas permaneceu sendo um problema para
a continuidade dos movimentos depredadores e exploratórios. Então, quando se
analisa a situação pela perspectiva daqueles que mandam e de outros que
obedecem, a essência humana desaparece do cenário.
Porque se há quem possa usurpar
de bens e riquezas, da dignidade, da cidadania, de todos os aspectos identitários
do outro, esse outro foi automaticamente reduzido, inferiorizado, invisibilizado,
negado socialmente. Ele perdeu o status da sua humanidade pela força do poder
de quem se julga acima ou superior a ele.
É justamente isso que a sociedade
brasileira, em suas diversas gerações, tem assistido impávida acontecer com os
povos originários. Lenta e gradualmente as tribos espalhadas pelo território
nacional são sumariamente expostas a todo tipo de violência, desapropriadas e
despidas da sua essência histórica, para deixar o espaço geográfico livre para
as investidas da devastação capital.
Em linhas gerais, pode-se dizer
que por trás da dizimação indígena no Brasil há uma imensa legião de adoradores
do Bezerro de Ouro 1. Gente que coloca o
dinheiro acima de tudo. Que exerce o individualismo e a ganância até as últimas
consequências. Que já perdeu, por completo, o senso de humanidade, de
integridade, de dignidade, de coletividade, de respeito ao próximo.
Entretanto, vale ressaltar que os
movimentos dizimatórios dos povos originários não dizem respeito somente a uma
perda quantitativa dos indivíduos. A dizimação indígena é, na verdade, uma amputação
fria e calculista da identidade nacional.
Isso significa que as perdas indígenas
traduzem a fragilização e a dissolução da riqueza sociocultural brasileira,
tanto material quanto imaterial, na medida em que se perdem referências de
costumes, de práticas, de linguagens, de comportamentos, de crenças, de
valores, de princípios.
Cada índio morto é um pedaço importante,
do Brasil, que morre. E morre, em nome de quê? Pois é, invisibilizar ou negar
os povos originários é, também, invisibilizar e negar o fato de que o sistema
exploratório é finito.
Posta ao chão a Floresta
Amazônica, ou qualquer outro bioma nacional, antes do que se imagina terá seus recursos
exauridos. O consumismo exploratório não é diferente do consumismo dos bens
industrializados, na medida em que sua voracidade logo encontra um limite.
Assim, a continuar a vida a
correr por esses descaminhos, em breve, não teremos povos originários, não
teremos floresta, não teremos riquezas minerais, vegetais ou animais, não
teremos água, não teremos ar respirável, não teremos solo fértil, não teremos identidade,
não teremos vida, não teremos nada.
Como disse Ailton Krenak 2, “a mentira e a manipulação colocam a vida das pessoas íntegras em risco”, pelo simples fato de que “os brancos acham que o ambiente é ‘recurso natural’, como se fosse um almoxarifado onde você vai e tira as coisas, tira as coisas, tira as coisas”. Por isso, “se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos”.