terça-feira, 19 de abril de 2022

Povos originários. Cidadãos brasileiros.


Povos originários. Cidadãos brasileiros.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Imagine chegar em casa e encontrar tudo destruído e revirado. Descobrir que objetos e memórias importantes foram sumariamente pilhados. Que pessoas da sua mais alta estima, presentes no local, foram agredidas violentamente e de diferentes maneiras. Como você reagiria? Como você se sentiria?

Apesar de impactante, essa proposta hipotética não foge, tanto assim, das vias possíveis de acontecer. Não, porque vivemos os tempos das mais profundas incertezas contemporâneas; mas, porque, entre os seres humanos, essas práxis foram institucionalizadas há tempos.    

Mas, o que me faz propor essa reflexão é o fato de que, talvez, nesse exato momento, em algum lugar da Floresta Amazônica, uma comunidade de povos originários do país esteja sentindo na pele as consequências de uma situação como a que foi colocada acima.

A questão é que diferentemente das repercussões que isso desencadeia em relação ao homem branco, quando o protagonista da história é o indígena, o silêncio, a negação e a inviabilização dos acontecimentos preenche os espaços para impedir quaisquer reflexões ou discussões a respeito.

O estranhamente curioso nessa história é que, do ponto de vista jurídico-normativo, não há em quaisquer registros documentais a presença de uma definição categorizada ou individualizada em relação ao ser humano. Seres humanos são seres humanos e ponto final. Não se atribuem direitos e deveres segundo a cor da pele, da etnia, do gênero, da idade, da escolaridade, da religião, disso ou daquilo. Todos são vistos e entendidos apenas como seres humanos. Todos pertencentes a espécie Homo sapiens.

Portanto, o que persiste e resiste, no Brasil, no sentido das relações sociais entre os seus cidadãos contraria e violenta não só o espírito humano, que deveria habitar e guiar cada indivíduo no mais profundo do seu ser, em termos de empatia, de fraternidade, de respeito; mas, especialmente, as leis e as normas que regem a sociedade brasileira.

Se o curso da história do Brasil se mostrou sádica e perversa com os seus povos originários, matando-os, dizimando-os, escravizando-os, aculturando-os, durante séculos, pouco mais de 500 anos desconstrói a justificativa de uma insuficiência temporal para a efetivação de transformações profundas a esse respeito.

De modo que essa desculpa esfarrapada “não cola”. Não se trata de tempo. O ponto nevrálgico dessa relação é a fundamentação ou a ideologização pautada no Colonialismo. Sobretudo, na divisão social estabelecida entre dominados e dominadores, a qual permitia que os propósitos econômicos alicerçados na prática da exploração de riquezas e bens, existentes na Colônia, pudessem ser alcançados sem grandes obstáculos ou entraves.

Sendo assim, o tempo pode ter passado, o Colonialismo na sua concepção original pode ter acabado; mas, os interesses econômicos vieram sendo reformulados a fim de conquistar um espaço cada vez mais importante para a humanidade. A velha máxima do “dinheiro chamando dinheiro”.

Dentro desse contexto, então, a presença de povos originários nas áreas nativas permaneceu sendo um problema para a continuidade dos movimentos depredadores e exploratórios. Então, quando se analisa a situação pela perspectiva daqueles que mandam e de outros que obedecem, a essência humana desaparece do cenário.

Porque se há quem possa usurpar de bens e riquezas, da dignidade, da cidadania, de todos os aspectos identitários do outro, esse outro foi automaticamente reduzido, inferiorizado, invisibilizado, negado socialmente. Ele perdeu o status da sua humanidade pela força do poder de quem se julga acima ou superior a ele.

É justamente isso que a sociedade brasileira, em suas diversas gerações, tem assistido impávida acontecer com os povos originários. Lenta e gradualmente as tribos espalhadas pelo território nacional são sumariamente expostas a todo tipo de violência, desapropriadas e despidas da sua essência histórica, para deixar o espaço geográfico livre para as investidas da devastação capital.

Em linhas gerais, pode-se dizer que por trás da dizimação indígena no Brasil há uma imensa legião de adoradores do Bezerro de Ouro 1. Gente que coloca o dinheiro acima de tudo. Que exerce o individualismo e a ganância até as últimas consequências. Que já perdeu, por completo, o senso de humanidade, de integridade, de dignidade, de coletividade, de respeito ao próximo.

Entretanto, vale ressaltar que os movimentos dizimatórios dos povos originários não dizem respeito somente a uma perda quantitativa dos indivíduos. A dizimação indígena é, na verdade, uma amputação fria e calculista da identidade nacional.

Isso significa que as perdas indígenas traduzem a fragilização e a dissolução da riqueza sociocultural brasileira, tanto material quanto imaterial, na medida em que se perdem referências de costumes, de práticas, de linguagens, de comportamentos, de crenças, de valores, de princípios.

Cada índio morto é um pedaço importante, do Brasil, que morre. E morre, em nome de quê? Pois é, invisibilizar ou negar os povos originários é, também, invisibilizar e negar o fato de que o sistema exploratório é finito.

Posta ao chão a Floresta Amazônica, ou qualquer outro bioma nacional, antes do que se imagina terá seus recursos exauridos. O consumismo exploratório não é diferente do consumismo dos bens industrializados, na medida em que sua voracidade logo encontra um limite.

Assim, a continuar a vida a correr por esses descaminhos, em breve, não teremos povos originários, não teremos floresta, não teremos riquezas minerais, vegetais ou animais, não teremos água, não teremos ar respirável, não teremos solo fértil, não teremos identidade, não teremos vida, não teremos nada.

Como disse Ailton Krenak 2, “a mentira e a manipulação colocam a vida das pessoas íntegras em risco”, pelo simples fato de que “os brancos acham que o ambiente é ‘recurso natural’, como se fosse um almoxarifado onde você vai e tira as coisas, tira as coisas, tira as coisas”. Por isso, “se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos”.