segunda-feira, 28 de março de 2022

Para qualquer pessoa, em qualquer língua, em qualquer lugar...


Para qualquer pessoa, em qualquer língua, em qualquer lugar...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Dizem que festa sem “barraco” não é festa. Mas, não é pelo incidente infeliz que a 94ª cerimônia de entrega dos Academy Awards (Oscars) merece ser lembrada. Não. Foi por ter dado mais um passo firme rumo a sua transformação, nesse quase um século de existência, fortalecendo a diversidade sob diferentes aspectos.

As mulheres puderam celebrar suas conquistas1. Negros puderam celebrar suas conquistas2. A comunidade LGBTQIA+ pode celebrar suas conquistas3. Latinos puderam celebrar suas conquistas4. Surdos puderam celebrar suas conquistas5. Um novo modo de fazer cinema pode celebrar sua conquista6.  

Depois de dois anos sem cumprir os ritos da grande festa do cinema, por conta da pandemia, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood fez uma celebração digna para a volta aos holofotes e glamoures.

Talvez, o que ninguém poderia supor é que o período sabático imposto pela COVID-19 despertaria um senso de humanidade tão impactante ao mundo do cinema. Aqui e ali estavam presentes o amor, a família, a inclusão, a diversidade, permitindo lançar o pensamento além dos limites existentes.

Mas, na minha opinião, o ponto alto foi trazido pelo filme “CODA – No ritmo do Coração”, uma história humana, familiar, cuja estrutura se estabelece a partir de personagens surdos.

Para quem não sabe, segundo o Relatório Mundial da Audição, em 2021, publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), “1,5 bilhão de pessoas têm algum grau de deficiência auditiva (surdez) hoje no mundo” 7. No Brasil, essas pessoas representam 10 milhões de indivíduos 8.

Daí a importância de oferecer representatividade para elas na produção cinematográfica. Não só porque se abre espaço em um mercado de trabalho tão seletivo e discriminatório; mas, porque se rompe de maneira mais contundente com o senso de exclusão e de incapacidade.

Infelizmente, não são raras as vezes em que o comportamento da sociedade em relação aos deficientes tende a gerar invisibilidade e marginalização, impondo-lhes impactos negativos profundos. O que no caso da surdez, por exemplo, repercute na comunicação e desenvolvimento da linguagem, no processo de ensino-aprendizagem, no acesso ao mercado de trabalho, na saúde mental e nas relações interpessoais.

Entretanto, não deveria haver razões para ser assim. Primeiro, porque “existem mais de 300 variantes da língua de sinais no mundo. Elas são responsáveis por boa parte da comunicação de surdos, que totalizam 466 milhões de pessoas” 9.

Segundo, porque a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) tem alertado que “até 2050, 900 milhões de pessoas podem desenvolver surdez” 10 em todo o mundo, o que significa que essa é uma situação estabelecida.

Se a surdez, então, é uma condição presente no mundo e a solução começa pela Língua de Sinais, o que falta para transformar a realidade? Para início de conversa, boa vontade, bom senso e disposição, no sentido de divulgar, promover e tornar cada vez mais acessível as diversas camadas de conhecimento e informação que desmistificam a surdez; bem como, a deficiência auditiva.

Aliás, aproveito para ressaltar que a diferença entre os termos está no fato de que a primeira se refere a uma perda profunda, acentuada, que incapacita o indivíduo de ouvir. A segunda se refere ao indivíduo que sofreu uma perde leve ou moderada. Assim, apesar de predominar entre os surdos o aprendizado das Línguas de Sinais, isso não significa que qualquer pessoa, surda ou não, não possa aprender também.

Feito esse esclarecimento, retomando a reflexão sobre a importância da comunicação e da informação, vejamos que no Brasil, a lei n. º 10436/2002 reconhece a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como instrumento legal de comunicação e expressão dos surdos; mas, ela não se encontra presente no ensino da grande maioria das escolas brasileiras.

Ainda que o Decreto Federal n. º 5626/2005 tenha estabelecido o direito dos alunos deficientes auditivos a uma educação bilíngue nas classes regulares, ou seja, obter a LIBRAS como primeira língua e a Língua Portuguesa, na modalidade escrita, como segunda língua.

Mas, esse é só um viés da questão. As deficiências passam despercebidas em grande parte da sociedade, por conta de um sentimento de puro desinteresse ou falta de conexão e vivência com seus portadores.

E isso é facilmente perceptível, por exemplo, quando se questiona as pessoas se elas já ouviram falar sobre o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), no Rio de Janeiro? Ou sobre o aplicativo do jornal Primeira Mão 11? Ou sobre o VLibras 12? Ou sobre a existência de Línguas de Sinas Indígenas, tais como a Ka’apor Brasileira ou a Língua de Sinais do Povo Terena? O resultado traduz a realidade de que essas questões fazem parte de uma realidade paralela e alheia à grande maioria.

Lamentavelmente, a contemporaneidade tem nos aproximado cada vez mais de uma visão idealizada da perfeição humana. Corpos perfeitos. Beleza perfeita. Imagem perfeita. ... Ninguém quer ver ou lidar com aspectos da condição humana que possam apontar um desalinhamento aos padrões “determinados”.

De modo que tudo aquilo que foge à regra é sumariamente banido, ou desconsiderado, ou invisibilizado, como se tivesse rompido com esse pseudopacto de padronização. A ideia não é de que o mundo se ajuste e se adapte as demandas do indivíduo; mas, que ele se ajuste e se adapte as demandas do mundo.

Então, ao se promover iniciativas como a do filme “CODA – No ritmo do Coração”, a humanidade começa a desconstruir, a ressignificar esses paradigmas. Paulo Freire já dizia que “a inclusão acontece quando se aprende com as diferenças e não com as igualdades”; afinal, “não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”.

Nada pode ser obstáculo, empecilho, barreira, quando a vontade humana sobressai, exceto a ausência, a insuficiência, a limitação de oportunidades. Não, não é a deficiência que impede as pessoas disso ou daquilo; são as próprias pessoas. No seu medo de errar ou fracassar, na sua ausência de ousadia, na sua reticência diante dos julgamentos do mundo.

O importante é entender e aceitar o fato de que é fundamental “deixar as pessoas serem como são. Vivendo em suas diferenças e a partir de seus próprios pressupostos culturais” (José Saramago. “As palavras de Saramago”, 2010), porque “[...] o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa. Não é igual a nada. Todo ser humano é um estranho ímpar” (Carlos Drummond de Andrade. “Igual-Desigual”, em A Paixão Medida, 1980).

Desse modo, que esse seja apenas um entre muitos degraus a serem conquistados no sentido de que, cada vez mais, os Oscars e quaisquer outros prêmios e reverências cheguem para quaisquer pessoas, em quaisquer línguas, em quaisquer lugares.  



1 Jane Campion – Melhor Direção. (O ataque dos cães). Ela é a terceira mulher a ganhar a estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Ariana de Bose – Melhor Atriz Coadjuvante. (Amor, sublime amor). Ela é a primeira afro-latina, e declaradamente queer, a ganhar a estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

The Queen of Basketball – Melhor Documentário de Curta-metragem. (A Rainha do Basquete). Ele conta a história de Lucy Harris, a primeira mulher a pontuar no Basquete Olímpico e a primeira e única mulher oficialmente convocada para a NBA.

2 Will Smith – Melhor Ator. (Richard King: Criando Campeãs). Ele é o sétimo homem negro a ganhar a estatueta da Academia de Artes e Ciencias Cinematográficas de Hollywood. Além disso, o filme “King Richard: Criando campeãs” conta a história de Vênus e Serena Williams, cujo trabalho incansável de seu pai as transformou em um fenômeno do tênis mundial.

Summer of Soul - Melhor Documentário de Longa-metragem. Ele conta a história do Harlem Cultural festival, em 1969, o qual celebrou a música e a cultura afro-americana, promovendo o orgulho e a unidade do povo negro.

Ariana de Bose – Melhor Atriz Coadjuvante.

The Queen of Basketball – Melhor Documentário de Curta-metragem.

3 Ariana de Bose – Melhor Atriz Coadjuvante.

Jessica Chastain – Melhor Atriz. (Os olhos de Tammy Faye). Em seu discurso ela fez um alerta sobre os riscos de suicídio na contemporaneidade; especialmente, entre pessoas LGBTQIA+, um grupo com grande número de casos.

4 Encanto – Melhor filme de animação. Ele conta a história de uma família colombiana, os Madrigal, que vive escondida nas montanhas do seu país em uma casa mágica.

Ariana de Bose – Melhor Atriz Coadjuvante.

5 Troy Kotsur – Melhor Ator Coadjuvante. (CODA – No ritmo do coração). Ela é o primeiro homem surdo a ganhar a estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

CODA – No ritmo do Coração. Melhor Filme. 

CODA – No ritmo do Coração. Melhor Roteiro Adaptado. 

6 CODA – No ritmo do Coração. Melhor Filme. Foi a primeira vez que um filme pertencente a uma plataforma de streaming venceu o Oscar na sua principal categoria.

9 Idem 7.

10 Idem 7.