domingo, 20 de fevereiro de 2022

Os ecos das tragédias...


Os ecos das tragédias...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O que está claramente exposto em relação as chuvas torrenciais que vêm impactando diversas regiões brasileiras, desde o fim de 2021, é o fato da inexistência de um planejamento estratégico de enfrentamento. Trata-se de uma outra vertente do negacionismo, a qual não presta atenção e nem dá crédito às notícias e informações a respeito do que acontece na dinâmica do clima, em termos nacionais e internacionais.

Simplesmente, ela se coloca na posição de que isso ou aquilo “jamais irá ocorrer por aqui”, usando de argumentos vazios, de achismos e casuísmos oportunistas, para tentar criar alguma argumentação. Como se fosse adiantar. Até que, o pior sempre chega, sempre acontece, e pega a todos desprevenidos, vulneráveis, totalmente desprotegidos.   

O pior é perceber que, mesmo diante dos fatos consolidados, da tragédia estampada explicitamente, nem assim, as pessoas se dão conta da realidade, tim-tim por tim-tim. Aliás, os gestores públicos são os primeiros a levantar coro nesse sentido, atribuindo ao caos uma excepcionalidade totalmente dissociada de um processo de maturação que é fermentado pelo tempo.  Ah, foi o imprevisível! Ah, foi de repente! Ah, ninguém podia prever! Ah, foi...

De modo que, agora, está tudo revirado, tudo fora de lugar. E não há planos. Não há estratégias. Por onde começar? Essa é a pergunta que não quer calar. Sobretudo, porque as chuvas continuam e tornam o processo ainda mais difícil e complexo. Os terrenos encharcados são muito instáveis e pode continuar existindo o risco de novos desabamentos de grandes proporções.

E enquanto o cenário é de terra arrasada e as preocupações maiores se voltam para os perigos visíveis, uma outra frente de problemas começa a emergir. Em meio a todo o entulho formado pela varredura da inundação, da desestabilização do terreno, há muita matéria orgânica se decompondo, há corpos que ainda não foram encontrados, as redes de água e de saneamento básico foram destruídas e/ou impactadas em muitos trechos, há lixo de diversas fontes, e tudo isso em contato direto com a população.

Afinal de contas, as pessoas estão transitando pela cidade, tentando limpar o que restou, auxiliando na busca pelos desaparecidos, ... e na maioria dos casos, sem quaisquer equipamentos de proteção individual, como luvas e botas. Isso significa que a probabilidade de adoecimento dessa população, antes mesmo que a cidade esteja organizada novamente, é muito grande.

Pode, portanto, haver casos de Cólera, de Dengue, de Febre Tifoide, de Hepatites A e E, de Leptospirose, de Tétano, dentre outras doenças, porque há uma dificuldade real de limpeza e desinfecção das áreas afetadas, incluindo ambientes domésticos, utensílios, móveis e outros objetos. O que torna a retomada do cotidiano pelas pessoas, ainda mais, lento e doloroso, na medida em que elas terão que se tratar e recuperar dessas doenças em condições precárias e, muitas vezes, desconfortáveis e aquém da necessidade real.

De modo que os desdobramentos e repercussões que esse tipo de catástrofe natural desencadeia não são de curto de prazo. Eles ficam ecoando por muito tempo e, às vezes, são surpreendidos pelo acréscimo de novos episódios. O que tende a intensificar ou constituir sequelas provenientes dessas doenças, caso não seja dada a devida atenção a elas. Portanto, vai depender do estado clínico prévio das pessoas, da idade, da permanência em contato com o agente contaminante, da velocidade e eficiência do atendimento prestado, enfim.

Quando infectado pelo Cólera, por exemplo, o indivíduo pode ser acometido por uma intensa debilidade corporal ao ponto de afetar o funcionamento dos rins e levar ao coma.

No caso da Dengue pode ocorrer um quadro de febre hemorrágica bastante delicado e perigoso, especialmente em pacientes com outras comorbidades.

Quanto à Febre Tifoide a possibilidade de complicações severas em órgãos como o fígado, o baço, a vesícula e, algumas vezes, a medula óssea, pode resultar em óbito.

As Hepatites podem se cronificar e desenvolver casos de cirrose e, eventualmente, câncer no fígado.

O Tétano pode causar fraturas ósseas, baixa ventilação, parada respiratória, choque circulatório, hipertensão e arritmia cardíaca.

E a Leptospirose pode comprometer as funções renais e causar hemorragias, principalmente, nos pulmões.   

Daí a necessidade, cada vez mais recorrente, de entender que não se pode dissociar ou compartimentalizar os acontecimentos. Mahatma Gandhi já dizia que “Um homem não pode fazer o certo numa área da vida, enquanto está ocupado em fazer o errado em outra. A vida é um todo indivisível”.

O cotidiano é como um castelo de cartas, onde delicada e sutilmente se equilibram os elementos. Um movimento mais abrupto, um descuido momentâneo, e tudo cai, tudo desaba, e precisa ser reiniciado. Esse é o ponto, reiniciar como? Da mesma forma? Agindo da mesma maneira? Repetindo os velhos erros e equívocos?

Cada nova tragédia nos impõe a derrota da omissão, da negligência, da irresponsabilidade gratuita e voluntária. De modo que não há justificativas, não há desculpas, não há mea culpa suficiente para amenizar ou atenuar os acontecimentos.  Mas, ao mesmo tempo, as novas tragédias oferecem uma possibilidade de seguir adiante, sob novos paradigmas, a partir daquele ponto.

Já dizia o filósofo e sociólogo francês, Jean Baudrillard, “Se a coesão da nossa sociedade era mantida outrora pelo imaginário de progresso, ela o é hoje pelo imaginário da catástrofe”.  E isso, infelizmente, acontece porque “O pior num ser humano é mesmo saber demais e ser inferior ao que sabe” (Jean Baudrillard). De modo que, quando menos se espera, “A história da humanidade torna-se cada vez mais uma corrida entre a educação e a catástrofe” (Herbert George Wells – escritor inglês).

Assim, o importante no contexto do que temos presenciado no Brasil, até agora, é não se permitir cair na tentação de questionamentos e divagações infundadas, a fim de não se reconhecer que os eventos climáticos extremos não só estão se acirrando; mas, se intensificando em frequência de episódios e ampliando o raio de ação. Pois, como já se tem experimentado por aí, não é um comportamento nada inteligente e equilibrado medir forças com a natureza.