quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Qual é o preço da teimosia?


Qual é o preço da teimosia?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Qual é o preço da teimosia? Depende. A teimosia não diz respeito apenas ao material da vida. Há quase dois anos nos deparamos com a vastidão da imaterialidade, através da Pandemia, na visualização de centenas de milhares de vidas ceifadas abruptamente pelo Sars-Cov-2. Por isso, já éramos para ter aprendido que determinadas discussões, e confusões, não cabem em termos de precificação, de valoração financeira. Mas, ao que tudo indica, parece que não aprendemos, não é mesmo?!

E não digo isso, me restringindo exclusivamente ao Brasil. O mundo tem agido com teimosia. É uma pena que a humanidade esteja cada vez mais absorta por uma infantilidade arrogante e prepotente que não aceita ser contrariada, ou questionada, ou contida no seu ímpeto, pela força de argumentos claros, coerentes, precisos, advindos particularmente do campo científico. De modo que se perde um tempo precioso em discursos e narrativas vazias, inconsistentes, para não dizer vexatórias e constrangedoras, ao invés de elevar o bom senso e a responsabilidade na tomada de decisões.

Então, não é à toa que tenhamos voltado quase à estaca zero do jogo. Não adianta fingir, negar, mentir. O surgimento da variante Ômicron, ou quaisquer outras variantes já surgidas ou a surgir, é consequência das teimosias acumuladas ao longo desse período. O fato de estarmos agora diante de praticamente um vírus novo, dadas as mais de 50 mutações apresentadas na variante Ômicron, faz com que novas perguntas precisem ser respondidas pela Ciência, o mais rápido possível.

Mas, para isso é imperioso não desconsiderar o que já se sabe a respeito dessa doença, não teimar a esse respeito. Higiene constante das mãos, com água e sabão ou álcool em gel. Uso correto de máscaras, cobrindo o nariz e a boca; bem como, com sua substituição periódica para evitar a permeabilidade viral através do material utilizado na confecção do produto. Distanciamento social a fim de evitar aglomerações e ampliação do contágio.

É bom lembrar que, no caso brasileiro, por mais uma ironia ácida do destino, não estamos frente a frente apenas com o Sars-Cov-2 e suas variantes; mas, com uma nova cepa do vírus da Influenza (Gripe), o H3N2. Sem contar, outros agentes virais comuns a infecções do trato respiratório, que têm sido observados em circulação no país, por incrível que pareça, em pleno verão.

Aliás, já se leem relatos, através dos veículos de comunicação e informação, a respeito de casos de infecção simultânea entre o Sars-Cov-2 e o H3N2, os quais vêm sendo denominado como “Flurona”. O que faz emergir um número ainda maior de questionamentos a respeito, em termos de diagnóstico, letalidade1, mortalidade2, morbidade3, sequelas, profilaxia, eficácia de medicamentos e imunobiológicos, etc.

Portanto, o Brasil vive literalmente uma “tempestade viral perfeita”, enquanto teima em manter em níveis pífios a testagem da população. Enquanto teima em desconsiderar quaisquer estratégias de imunização extra tempore contra a gripe, considerando que a campanha de 2021 alcançou índices vacinais abaixo das expectativas, por conta da própria Pandemia da COVID-19. Enquanto teima em obstaculizar a aquisição e acesso às vacinas contra o Sars-Cov-2 para atender o maior contingente de estratos etários da população. Enquanto teima em reduzir o orçamento da saúde pública, da ciência, da tecnologia e da educação, que são os esteios da biossegurança nacional. Enquanto teima em flexibilizar e/ou negociar as medidas de prevenção, em nome de não se indispor com a vontade popular de uns e outros. ... Enquanto resiste e persiste em teimar.

Acontece que estamos falando de viroses de transmissão respiratória, ou seja, altamente dispersantes. Basta um indivíduo contaminado para dar início ao estrago coletivo. Cada ser humano é um carreador viral potencial e, além disso, um facilitador para que objetos inanimados (fômites) possam levar e espalhar os agentes infecciosos. Pode ser um sapato, uma toalha, uma maçaneta de veículo, um corrimão, um talher, ... basta que eles tenham entrado em contato com uma ou mais pessoas contaminadas para adquirir o agente patogênico e possibilitar a replicação da transmissão. Por isso, o trânsito de uma doença viral respiratória é tão rápido.

Contrariando a crença popular de que a gripe, por exemplo, é uma doença viral banal, sem maiores preocupações, na qual basta um analgésico e um antitérmico para solucionar o mal-estar e aguardar de 4 a 5 dias a recuperação total, a verdade não é tão simples assim. Segundo a Estratégia Global de Influenza para 2019-2030 divulgada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019, há uma preocupação mundial em “prevenir a influenza sazonal, controlar a propagação da influenza de animais para humanos e se preparar para a próxima pandemia de influenza”4.

Afinal, “a gripe continua sendo um dos maiores desafios de saúde pública do mundo. Todos os anos em todo o mundo, há cerca de 1 bilhão de casos, dos quais 3 a 5 milhões são casos graves, resultando em 290.000 a 650.000 mortes respiratórias relacionadas à influenza”; razão pela qual, a OMS recomenda a vacinação anual contra a influenza como forma mais eficaz de prevenção.

Infelizmente, precisou-se de uma Pandemia para que houvesse um “despertar” da população em relação a essas questões que sempre estiveram transitando entre nós, mas de uma maneira bastante invisibilizada pela ausência de uma repercussão mais incisiva por parte dos governos e órgãos de comunicação e de informação. A verdade é essa.

Anualmente, são milhões de vidas perdidas para doenças infectocontagiosas, muitas delas já preveníveis pela imunização, ou tratadas por medicamentos; mas, que permanecem negligenciadas, na maioria das vezes, pelos próprios cidadãos. Seja por más práticas de higiene. Seja por desconhecimento a respeito dessas doenças. Seja por descuido na convivência com certas espécies animais que são reservatórios de certos vírus, protozoários, bactérias e fungos. ...

As pessoas precisam se dar conta de que a teimosia não garante a imortalidade. Muito pelo contrário. A teimosia está adoecendo e matando milhões de pessoas por aí e se você não se cuidar poderá ser o próximo da fila. A teimosia está dilapidando a humanidade naquilo o que é mais importante, a sua gente. A teimosia está causando dor e sofrimento físico e moral. A teimosia está nos entristecendo, nos enraivecendo, nos brutalizando a essência. A teimosia está nos paralisando o desenvolvimento, a criatividade, a inovação, nos colocando na posição do atraso, da barbárie, da involução. ... Afinal, teimar quando tudo prova e comprova o contrário é a mais pura exibição da vaidade ignorante, da estupidez à enésima potência, do abandono completo da razão.  

 



1 Relaciona o número de óbitos por uma determinada causa e o número de pessoas que foram acometidas por uma determinada doença.

2 Refere-se ao conjunto dos indivíduos que morreram num dado intervalo de tempo. Representa o risco ou probabilidade que qualquer pessoa na população apresenta de poder vir a morrer ou morrer em decorrência de uma determinada doença.

3 Refere-se ao conjunto dos indivíduos que adquirem doenças (ou determinadas doenças) num dado intervalo de tempo em uma determinada população. Portanto, ela mostra o comportamento das doenças e dos agravos à saúde na população.