Consumidos
pelos vieses do narcisismo contemporâneo
Por
Alessandra Leles Rocha
Uma breve atenção aos veículos de
comunicação e informação para o processo de decodificação das notícias fluir a
todo vapor. E como o assunto da vez, em nosso solo tupiniquim, é a disseminação
galopante da variante ômicron, do Sars-Cov-2, e a H3N2, do Influenza, nada
melhor do que tentar entender os possíveis estopins para que chegássemos a essa
conjuntura.
Bem, o primeiro que me veio à
mente não poderia ser outro senão a negação. Cada dia mais me convenço de que
ela tem método, tem estratégia muito bem definida. Não é simplesmente negar por
negar. Já reparou como as pessoas têm dificuldade de se mostrarem doentes,
fragilizadas, vulneráveis? Pois é. Na verdade, não se trata de um comportamento
restrito à contemporaneidade; mas, faz bastante sentido de se encontrá-lo nesse
recorte de tempo, dadas as condições sociais.
Não há como discordar que a cada
novo passo das Revoluções Industriais a vida ficou mais difícil, mais
competitiva. Pessoas disputando espaço com pessoas. Pessoas disputando espaços
com máquinas e tecnologias, cada vez mais inovadoras. Portanto, a verdade nua e
crua é que não há espaço de sobrevivência para todos nesse contexto, daí a
formação das grandes massas de desempregados, desalentados e subocupados.
Aqueles que conseguem seu
lugarzinho ao sol precisam, então, lutar com unhas e dentes para assegurá-lo. O
que significa extrair até a última gota de energia de suas mentes e corpos para
trabalhar mais, produzir mais, gerar mais riquezas, consumir mais, enfim... Qualquer
sinal de doença, então, é uma ameaça a esse processo.
Assim, a ideia Darwiniana de que “não é o mais forte que sobrevive, nem o
mais inteligente, mas o que melhor se adapta as mudanças” faz com que as
pessoas ultrapassem seus próprios limites físicos e mentais para sobreviverem
aos desafios da selva capitalista. Quem assistiu ao filme “O Diabo veste Prada”
(The Devil wears Prada), de 2006, entende tudo isso muito bem. A contemporaneidade
impõe a necessidade de não sermos apenas “peças
de reposição”; mas, de sermos figuras essenciais, vitais, imprescindíveis ao
fluxo dos meios de produção.
O que explica a razão pela qual
houve tanta resistência, tanto incômodo, diante das exigências de isolamento
social e eventuais “lockdowns”
durante a Pandemia. “The show must go on”
1. O show tem que continuar. Os discursos
e narrativas aterrorizantes em relação aos impactos econômicos dessas medidas,
os riscos de desemprego e acentuadas perdas salariais, ... foram decisivos para
colocar “o bloco na rua” apesar dos
pesares.
É claro que muita gente, de fato,
não tinha outra opção. A sobrevivência diária, a fome, o lugar para morar, o remédio
de uso contínuo, ... não davam outra opção a não ser enfrentar o tal “inimigo invisível” na luta do
cotidiano. Muita gente adoeceu assim. Morreu assim. Porque faltaram “botes salva-vidas” para muitos. As cordas
de esperança demoraram a serem lançadas aos espaços urbanoindustriais.
Infelizmente, há quem desconheça
essa realidade perversa e cruel. Porém ela existe, ela pulsa todos os dias. Aliás,
independentemente da Pandemia. Sim, a grande massa da população engole a seco
as suas dores, as suas doenças, o seu cansaço físico e mental, porque não pode
se dar ao luxo de buscar auxílio na rede pública de saúde.
Às vezes, porque falta dinheiro
para a condução e a distância impede de ir a pé. Algumas, porque não podem
aguardar nas filas para agendamento, por causa do horário. Outras, porque têm
medo de serem afastadas e acabar caindo nas teias burocráticas do Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS). ... Então, quando se dão conta a situação não
é mais solucionável. Agravou. Cronificou. Espalhou. ... Em último caso, a morte
levou.
Sem percebermos, a crueza do
sistema vigente engole as pessoas sem digerir. Maltrata. Massacra. Mói até a
última gota. Depois descarta sem direitos, sem dizer muito obrigado. E muitas
dessas pessoas serão as que engrossam as filas de benefícios sociais do
governo, em nome do mínimo de dignidade que ainda possam resguardar. Para fugir
dos infortúnios da invisibilidade, do descaso nutrido pelo seu próprio país. Muitos
deles estão computados na cifra de mais de 620 mil mortos pela COVID-19 no
Brasil.
Agora, pare por um minuto e pense
nesse contexto agravado pela insegurança alimentar, decorrente da pobreza ou da
miséria extrema. É difícil, mas é preciso pensar a respeito. Um corpo
desnutrido e doente perde a condição de ser enquadrado dentro de parâmetros toleráveis
para essa ou aquela situação, porque ele se torna, de um algum modo, disfuncional.
Portanto, mais vulnerável, mais susceptível aos efeitos de situações de riscos,
de contaminações, de mazelas oportunistas.
Daí a necessidade de se enxergar
essas pessoas, para não permitir que se convertam em verdadeiros monturos
descartados ao relento. Porque apesar dos reveses que a vida pode dar, levando
a situações até impensadas, nada disso retira do ser humano a sua identidade
cidadã, os seus direitos humanos fundamentais. Gente é gente. Tem alma. Tem coração.
Tem sonhos. Tem esperanças. Tem dignidade. Tem habilidades. Tem.
É curioso se deparar com o fato
de que as autoridades públicas não se constrangem em cobrar taxas, impostos, tributos,
depois de espoliar de todas as maneiras possíveis e impossíveis a grande a
massa da população. Não se constrangem em lhes negar vacinas, remédios, tratamentos,
depois de lhes roubar os melhores anos, o viço, a força, o conhecimento. Esse comportamento
é, sem dúvida alguma, abjeto, repulsivo, degradante.
Por essas e por outras é que as
coisas estão como estão. Que a Pandemia por aqui nos faz girar dentro de uma
espiral insana de movimentos erráticos, caóticos, absurdos. Que o país está
desbotando a sua euforia, a sua alegria, a sua fé na vida, para ficar mais
cinza, mais casmurro, mais apropriado ao espetáculo. E nem adianta dizer que
não, porque sua fala não representa o país, no máximo ela representa uma ínfima
parcela. Afinal, o país são mais de 213 milhões de habitantes. Todos diferentes.
Todos plurais na sua singularidade. Todos com direitos e deveres. Pelo menos é o
que diz a Constituição Federal em vigência.