Match point para o Vírus?
Por
Alessandra Leles Rocha
A chamada “carteirada” é por si só um artifício social deselegante, acintoso
e démodé. Mas quando ela extrapola as
fronteiras do mundo cotidiano e ataca diretamente os limites da ordem pública,
no que diz respeito ao bem-estar coletivo e as normas sanitárias, aí a situação
fica bem mais constrangedora e injustificável.
Para quem ainda não entendeu, a
Pandemia não acabou. Aliás, um aviso público da Organização Mundial da Saúde
(OMS) a esse respeito só deve acontecer quando mais de 70% do planeta inteiro
estiver devidamente imunizado, segundo o protocolo vacinal estabelecido para o
Sars-Cov-2. Até lá, com o agente viral circulando em sua forma original e
variantes, a vida flui no compasso das idas e vindas da contaminação
populacional.
Sim, porque a vacina evita a
potencialidade de agravamento do inimigo invisível; mas, não o impede de nos
infectar e manifestar sintomas leves e/ou moderados, dentro das
particularidades e especificidades de cada indivíduo. Vírus são agentes muito
perspicazes, porque ao não encontrarem barreiras para a contaminação, isso não
os impede do seu objetivo principal que é dar continuidade ao seu processo de
reprodução e disseminação, mantendo-se vivos no ambiente, ou seja, garantindo a
sobrevivência de sua própria espécie.
Os vírus estão onde há seres
vivos, entendeu? Eles precisam de células vivas para darem continuidade a sua existência.
Desse modo, somos todos eventuais carreadores e dispersores virais. Não faz a menor diferença se você é branco ou
negro, homem ou mulher, jovem ou idoso, rico ou pobre, letrado ou analfabeto,
na medida em que não há ficha de inscrição para o vírus se instalar em você. Mas,
faz uma diferença enorme, do ponto de vista coletivo, quaisquer objeções, resistências
e negações em relação ao desenrolar do processo pandêmico, porque esse
movimento só faz agravar e retardar o fim da Pandemia.
É por isso que, de “carteirada”
em “carteirada”, as coisas estão como estão. Tem sempre alguém se considerando mais
bonito (a), mais esperto (a), mais inteligente, mais rico (a), mais poderoso
(a), ... o (a) verdadeiro (a) dono (a) do mundo, mesmo diante de uma situação
sanitária que já vitimou mais de 5 milhões de seres humanos em todo o planeta.
Nesse sentido, a discussão ética que se estabeleceu em torno do episódio do desportista
famoso não vacinado, não é tão superficial quanto possa parecer.
É claro que é lamentável que ele
não queira se vacinar ou que ele negue a doença; mas, a sua atitude abre um precedente
muito mais perigoso. Cada indivíduo, anônimo ou famoso, que se coloca em
posição contrária aos parâmetros da Ciência em relação à COVID-19, inconscientemente
está emitindo a mensagem que a raça humana não precisa mais se preocupar com os
protocolos de segurança e vigilância sanitária para quaisquer doenças infectocontagiosas
existentes ou a existir.
Como se, de repente, perdesse o
sentido construir áreas de isolamento para febres hemorrágicas, como o Ebola, que
dizimou mais de 11 mil pessoas na África Ocidental, entre 2013 e 2016. Aliás, nem
precisaríamos ir tão longe, a Tuberculose, que também atinge o Brasil, matou
1,5 milhão de pessoas no mundo, em 2020, segundo a OMS. Ela é uma doença que,
apesar de dispor de vacina para sua prevenção, a BCG, exige cuidados de higiene
e isolamento por parte dos pacientes e de quem cuida deles. Medidas, então, que
são fundamentais para o seu controle.
Então, se fôssemos discorrer a
lista de doenças infectocontagiosas presentes na realidade contemporânea,
talvez, muita gente começasse a ter dimensão do que realmente significa a importância
das medidas profiláticas para a sobrevivência da sua própria espécie. Que não
há nada de glamoroso na teimosia, na irresponsabilidade.
Eu sei que já citei essa frase do
médico norte-americano Joshua Lederberg, especialista em biologia molecular e
Prêmio Nobel de Fisiologia (Medicina), em 1958; mas, ela é um alerta atemporal
muito pertinente: “The single biggest
threat to man’s continued dominance on the planet is the vírus” (A única
maior ameaça ao contínuo domínio do homem no planeta é o vírus).
Porque ela nos ajuda a pensar que
as ameaças invisíveis podem estar além dos próprios vírus. Podem ser fungos, bactérias,
parasitas. A transmissão pode ser direta de pessoa para pessoa. Pode ser
indireta por veículo (alimento, água, material biológico, fômites) ou por
vetores (moscas, mosquitos, roedores, morcegos, pombos, gatos). Enfim...
Então, o que fazer se cada um na
sua bolha de arrogância e prepotência humana resolver ter um rompante de
superioridade imortal e começar a rechaçar as orientações da Ciência diante de
quaisquer doenças, hein? Na verdade, já estamos assistindo isso acontecer com a
redução significativa do número de crianças vacinadas dentro do protocolo
estabelecido pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) 1,
criado em 1973, por determinação do Ministério da Saúde. As tentativas de fortalecimento
do movimento Antivacinas em todo o mundo se fazem cada vez mais uma ameaça
global.
Se lhe parece difícil construir
uma opinião a respeito, que tal assistir a bons filmes sobre epidemias 2? Ainda que a ficção possa pecar, aqui
ou ali, em algum detalhe, as fontes consultadas para a confecção dos roteiros
são geralmente muito robustas e técnicas, de modo que a realidade se torna
muito bem representada. Vale a pena conferir!
Pois é, mediante esse breve
exposto parece que a “carteirada” perdeu a graça, não é mesmo? As decisões e as
escolhas que manifestamos não só têm consequências e desdobramentos; mas, têm
antes de tudo, limites. Questões sanitárias, por exemplo, ultrapassam as
fronteiras da individualidade para se tornarem questões coletivas e, até mesmo,
diplomáticas. Esse é um tipo de guerra, no qual a invisibilidade do inimigo é o
seu maior trunfo para nos derrotar. Então, ou jogamos pela sobrevivência no
campo das estratégias disponíveis ou deixamos que o Sars-Cov-2 continue desfrutando,
sempre, mais um “match point”.
1 Cartilha de
Vacinas – Para quem quer mesmo saber das coisas. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cart_vac.pdf
2 Travessia
de Cassandra (1976) - https://www.youtube.com/watch?v=XfbjOLYbQ5Q;
Epidemia (1995) - https://www.youtube.com/watch?v=3hOUU8LE5DI;
Contágio (2011) - https://www.youtube.com/watch?v=u-eGomOPITc;
A gripe (2013) - https://www.youtube.com/watch?v=1BvKZMg2LjU.