Você
não é só parte da história, você é a história.
Por
Alessandra Leles Rocha
Enquanto alguns dedicam sua atenção
à observação intensa e contínua das personalidades políticas do país, aquilo
que é verdadeiramente o fiel da balança e o ponto chave da análise acaba
ficando de lado, ou seja, os fatos. O Brasil é o que é, na verdade, não por
causa desse ou daquele personagem; mas, do emaranhado de acontecimentos e
conjunturas que tecem a sua história.
Infelizmente, não demos muita
sorte. Fomos alvo do pior tipo de colonização possível, a de exploração. Nosso território
não foi pensado para ser, para ter identidade própria, capacidade produtiva,
desenvolvimento, em algum momento da sua história. Não. Era uma despensa, um
gigantesco galpão de riquezas, as quais enquanto não tivessem sido exauridas
estavam à disposição para que a Metrópole tomasse para si na medida das suas
necessidades e interesses.
De modo que do ponto de vista populacional,
a sociedade que se estabeleceu não passou de uma reprodução da corte europeia
tanto em termos de comportamento quanto de ideologia. Era de fato uma extensão
apropriada e conveniente aos interesses metropolitanos da época, o que a
distanciava de alguma perspectiva de pensar a respeito do futuro, no campo
geopolítico do mundo. Parecia mais prático, mais cômodo, mais interessante,
usufruir das benesses que aquela subserviência lhes possibilitava. Como se não
houvesse nenhum equívoco nisso. Como se nada pudesse mudar os rumos da
história.
Entretanto, o mundo sempre foi
uma corrente de tensões e distensões contínuas. Mesmo em pleno século XVI, as
configurações geopolíticas viviam em plena efervescência e transformação,
graças as guerras, os conflitos, as piratarias, a dinâmica imposta pelo
Mercantilismo. O que significa que a desconstrução do cenário eram favas
contadas, para o Brasil. De uma hora para outra dormiríamos Colônia e acordaríamos
República, porque de algum modo os ventos da Revolução Francesa já agitavam a
Europa e inevitavelmente repercutiriam através das extensões metropolitanas mundo
afora.
Mas, mesmo que inconscientemente
sabendo disso, a sociedade brasileira, no que diz respeito à sua elite mandatária,
não se preocupou em reformular seus paradigmas, em vislumbrar novas
possibilidades. Muito pelo contrário, tentou amealhar o possível em termos de
riqueza que lhes propiciasse uma abastada sobrevivência, por um bom tempo, e só;
deixando que as conjunturas fluíssem sozinhas e constituíssem os caminhos a
seguir. Torcendo para que estes não fossem muito estranhos ao habitual já
conhecido e referendado.
É por tudo isso, que entra século
e sai século, e o Brasil permanece imerso nas suas indefinições, nas suas
contradições, nas suas burocracias, no seu conservadorismo de fachada. Cenários
são repaginados, falas são reescritas, personagens são acrescentados; mas, o
roteiro acaba sendo sempre mais do mesmo. Com nossas classes sociais cada vez mais
demarcadas, para garantir o imobilismo e, por consequência, o poder e a riqueza
concentrados nas mãos dos nobres herdeiros do Brasil Colônia, os quais foram
renomeados na paleta de composição do espectro político de direita.
Assim, perde totalmente a graça,
a expressão de surpresa diante da corrupção, da troca de favores, do “beija a mão”, da opulência da elite, da
pauta de costumes, ... porque isso é parte integrante e integrada da história
nacional. O país mudou de ingerências, mas não perdeu o seu espírito servil,
subserviente. Seja nas relações internas. Seja nas relações externas. Sempre tentando
se equilibrar para não perder eventuais regalias e privilégios, para tirar
alguma vantagem de riquezas.
A grande verdade é que a
República, por aqui, teve muito mais status de título representativo, do que
necessariamente a materialidade no paradigma governamental e institucional do
país. Simplesmente, porque a elite, que ascendeu ao poder, deu continuidade as
suas aspirações e pretensões coloniais, contrariando as crenças e valores
republicanos. Não é à toa que somente em 1988, o país conquistou uma Constituição
Federal que melhor representasse a cidadania nacional, ou seja, na medida dos
direitos que se passou a garantir ao povo brasileiro, fundamentados nos pilares
da Democracia.
Pena que no balanço das conquistas
e atrasos, a República Federativa brasileira continua no árduo desafio de
vencer o cabo de guerra imposto pela sua classe dominante. Um pouco mais de
observação para se concluir que poderíamos ter ido muito mais longe no nosso
progresso, no nosso desenvolvimento; mas, continuamos nos contentando com a
mais plena falta de protagonismo. Pois é, continuamos colônia de exploração. Comemorando
com certo entusiasmo embaraçoso os números do setor primário da economia,
enquanto encobrimos os resultados cada vez mais pífios expressos pelo
secundário e terciário.
E ainda há quem pense que o
problema está restrito as personagens no poder. Não. Absolutamente não. Nosso
problema é ideológico, identitário, histórico. Como dizia Jean-Paul Sartre, “O homem não é nada além do que faz de si
mesmo”. Nesse sentido, então, “[...] ainda somos os mesmos [...]” 1, como há mais de 500 anos; mas,
travestidos por uma imagem descolada e contemporânea, para não dar muito na
cara. Pena que a casca só consegue esconder; mas, não muda a essência da
semente.
E aí, de um jeito ou de outro, as
gerações que se sucedem vão sempre trazendo no seu inconsciente essas ideias
para serem reproduzidas, como se fosse a mais pura novidade do mercado. O que
torna possível entender as razões que levam a história a transitar em ciclos
repetitivos, que nos confrontam sempre os velhos erros, equívocos, distorções, absurdos.
Sempre resta uma semente, para o bem ou para o mal. Aí o efeito multiplicador
se reinicia e dá origem a novos ciclos de tensão e de desestabilização que
acabam sendo antiproducentes para os indivíduos, para o país, para o mundo.
Escolher uma pessoa, um
personagem, para difamar, desonrar, humilhar, rebaixar, ... segregar, como se
ela fosse a personificação dos problemas e mazelas do mundo, é muito raso,
muito superficial e inútil. Retira por completo a possibilidade de reflexão, de
análise que só existe nas ideias, nos fatos concretos, no longo curso da
história. Mas, eu também sei que é confortável o bastante, na medida em que
retira dos nossos ombros o peso constrangedor da autoacusação. Ora, será que
somos assim, tão diferentes, tão superiores?
O fato é que a contemporaneidade
teima em querer que se enxergue a vida por esse tipo de recorte. Aliás, é do
interesse dela. A questão é que eles são incapazes e insuficientes para nos
fazer entender com propriedade o mundo em que vivemos. Isso explica porque
tanta gente se tornou refém da Pós-Verdade, cuja função é criar e modelar a
opinião pública, no sentido de tornar os fatos menos importantes do que todo o
cenário apelativo às emoções e crenças individuais.
Assim, o mundo, o país, marcham a
passos largos em busca de resgatar, como se fosse possível, a vivência de um
recorte do tempo que ficou na história, sob discursos e narrativas saudosistas
e melancólicas que, na verdade, não fizeram sentido nem mesmo quando estavam
contextualizados temporalmente. Fica evidente, então, que ao aceitar ser parte
desse processo, você está automaticamente aceitando tudo o que vier dele. Desse
modo, não se esqueça de que você não é só parte da história, você é a história.