Há
muita água, ainda, para rolar debaixo dessa ponte...
Por
Alessandra Leles Rocha
E o “mundo registra mais de 3 milhões de casos de covid em 24 horas” 1, resultado da dispersão da variante
Ômicron. Bem, a notícia por si só preocupa e desconforta a grande maioria da
população; mas, há muito mais além nessas palavras para se dissecar e, talvez,
muitos ainda não se deram conta disso.
Enquanto, daqui e dali se ouvem
relatos de total espanto e surpresa diante dos recentes acontecimentos pandêmicos,
envolvendo a nova variante, o que me admira profundamente é pensar como essas
pessoas consideraram a hipótese de que a vida estaria começando a retomar seus
caminhos. Ora, estamos falando de uma doença, até então, desconhecida e, por
esse motivo, repleta de milhões de perguntas e muito poucas respostas a serem
obtidas em um curto espaço de tempo.
Aliás, a própria maneira
devastadora que ela utilizou para estarrecer o mundo já era motivo mais que
suficiente para cautela e atenção. Tanto sobre o que estava acontecendo diante
dos olhos quanto em relação ao que poderia estar por vir. Ah, e certamente
viria! Porque a dinâmica da Pandemia não deixou quaisquer possibilidades para a
humanidade debelar a situação na velocidade teórica de suas crenças e
pretensões.
De suprimentos médico-hospitalares
aos espaços para enterrar os milhões de mortos, o mundo assistiu a insuficiência
e o risco iminente de ampliar o quadro de vítimas do novo vírus. A corrida
contra o relógio tem sido intensa. Especialmente, nos núcleos de pesquisa
científica voltados para duas vertentes principais, ou seja, uma destinada a entender
a dinâmica biológica do agente infeccioso e outra que fosse capaz de
desenvolver fármacos e/ou imunobiológicos capazes de mitigar ou prevenir a
doença nos seus estágios mais complexos e letais.
Acontece que tudo isso é um
gigantesco desafio biológico e o tempo, uma variável até certo ponto
descompassada frente aos movimentos impostos pelo vírus. Então, por mais que
seja duro e não palatável aos seres humanos admitir, a verdade é que de uma
hora para outra o planeta passou a girar em torno do Sars-Cov-2. Por mais que
pareça humilhante estar submisso e entregue às vontades de um inimigo diminuto
e invisível; sim, ele está com o poder, com o controle de tudo e de todos.
E é justamente por essa ótica que
eu parto a minha reflexão. Essa Pandemia não representa sozinha uma ruptura de
paradigmas nas relações socioeconômicas vigentes; mas, certamente, ela tem sim,
o poder de sinalizar o que ainda está por vir. Além do que já fora aventado pela
Organização Mundial da Saúde (OMS) e demais centros de excelência em pesquisa
médica e biológica, a respeito da possibilidade real da raça humana ser
confrontada por outras pandemias em um provável curto espaço de tempo, os
eventos extremos das mudanças climáticas já estão em curso ao redor do planeta.
Ocorre que essas situações estão
impondo uma desconstrução, de certo modo abrupta, aos modelos e teorias econômicas,
na medida em que as conjunturas passam a não caberem mais dentro das previsões estatísticas.
No caso da variante Ômicron, por exemplo, a cada ciclo de 24 horas em que os números
de infectados apontam para os milhões, já se estabelece um impacto direto nas
relações econômicas e de trabalho, em diferentes lugares, porque seres humanos
precisam ser isolados, precisam ser tratados. Então, a dinâmica das atividades econômicas
é prejudicada e as expectativas de resultados frustradas.
O mesmo acontece quando
enchentes, tornados, vulcões, assolam cidades inteiras. A economia desses
locais se torna literalmente arrasada e passa a demandar esforços nacionais
para se reerguer, estabelecendo um outro nível de impacto, o qual passa a
atingir diretamente o país. Portanto, esses fenômenos que ultrapassam os
mecanismos de controle humano estão reposicionando a contemporaneidade dentro
de outros parâmetros socioeconômicos. Não adianta tentar fazer caber o sistema econômico
que se conhece, dada a fúria com que as conjunturas derrubam as peças do
tabuleiro.
O jogo a partir de agora é outro.
Há uma nova ordem socioeconômica em curso. De nada adianta pensar que vencendo
o Sars-Cov-2 e suas variantes está tudo resolvido. Não, não está. Primeiro, porque
sozinho, ele já impôs à humanidade uma série de reconstruções a fim de reparar
as inúmeras perdas que aconteceram em cada setor da vida durante o seu ataque.
Segundo, porque em meio a esse processo de recuperação poderemos ser
surpreendidos novamente por quaisquer manifestações do imponderável que nos espreitam
sem descanso.
Há dois anos estamos
experimentando idas e vindas, dando passos à frente e retrocendo outros tantos.
Olhando micro e macroscopicamente para o mundo, já temos consolidadas as
informações pouco entusiasmadas a respeito de avanços, conquistas e progressos socioeconômicos.
A humanidade, nesse breve recorte de tempo, empobreceu sob os mais diferentes
aspectos. E isso não diz respeito apenas aos pobres e desvalidos. Trilhardários, bilionários e milionários, que
circulam na capa das renomadas revistas sobre grandes fortunas, estão vendo o
seu patrimônio diluir lenta e gradualmente à revelia do seu poder e influência.
Pois é, se grandes indústrias e
corporações trabalharam incessantemente na produção de insumos e mercadorias
essenciais no combate à Pandemia, centenas de milhares de outras paralisaram pela
falta do interesse comercial imposto pelas medidas urgentes de isolamento. Consumiu-se,
então, menos petróleo. Vejam só, até os níveis de poluição no ar se revelaram
bem menores! Mas, tudo isso resultou na configuração de um panorama estranho às
expectativas que se desenhavam até aquele momento.
A Revolução Industrial nunca
pensou em se deparar com um cenário assim. Como um pássaro que destrói a
turbina de um avião em pleno voo, o Sars-Cov-2 desalinhou as engrenagens do
capital. E se ela sai do prumo, a gigantesca teia da economia mundial também
sai. Produz-se menos. Vende-se menos. Compra-se menos. Obtém-se lucros menores.
Investimentos menores. Necessita-se menos de mão de obra. De matéria-prima. Mudam-se
os interesses de consumo. Mudam-se os interesses produtivos. Enfim...
E enquanto tudo isso acontece,
muita gente não se dá conta de que as transformações ideológicas e
comportamentais estão a pleno vapor. A nova realidade instituída e legitimada
pelas conjunturas mais adversas faz com que as pessoas reavaliem suas
prioridades, suas necessidades, seus hábitos, seus interesses. Isso é
histórico, basta ver como a sociedade se comportou durante as duas Grandes
Guerras. De modo que esse movimento silencioso e pontual, que acontece na
intimidade da vida privada de cada cidadão, acaba impactando a economia em seus
diferentes níveis. Já ouviram falar, por exemplo, em “moda afetiva”2?
Então, para que não se venha sofrer
por novos espantos e surpresas, é prudente começar a ler as entrelinhas dos
acontecimentos atuais até o fim. Como se nelas estivessem notas de rodapé
repletas de informações fundamentais para a nossa própria sobrevivência. Aliás,
é estranho pensar como a contemporaneidade com seu mar de incertezas foi arrebatada
pelo próprio imponderável. Mas, aconteceu.
Portanto, tendo isso acontecido,
restou o sinal de alerta para que sejamos mais realistas, mais pés no chão,
mais atentos, prudentes, previdentes, responsáveis. Um rio de águas calmas pode
esconder perigos, pedras, redemoinhos. Assim, considerar o fato de que as
mudanças estão apenas começando, que há muita água, ainda, para rolar debaixo dessa
ponte e mexer com a ordem das pedras, dos redemoinhos, formula um alento interessante
para nos ajudar a digerir melhor as conjunturas. Pense nisso!