quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

“Em se plantando tudo dá”. Será mesmo o bastante?!


“Em se plantando tudo dá”. Será mesmo o bastante?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Pontes destruídas. Estradas bloqueadas. Vastas extensões de terra submersas pelas águas furiosas dos rios transbordantes. Desabrigados. Desalentados. Mortos. Enfim, o cenário caótico de diversas cidades brasileiras nesse fim/início de ano faz pensar profundamente sobre a verdade da realidade. Tratam-se de situações que não se possibilita maquiar para dar aspecto melhor. São exatamente o que são. Destruição em estado bruto, aguardando o angustiante momento do recomeço, da reconstrução.

Mas, se fosse só (tudo) isso, já seria muito. Acontece que o fato se decompõe em camadas.  Quando a gente se dá conta, esse não é o problema de fulano ou beltrano, desse ou daquele lugar, é um problema nacional. Do mesmo modo, quando se aborda a seca, a escassez hídrica, a ausência de chuvas, em outros cantos do território. E sabe por quê? Porque o denominador comum dessa história não são as intempéries ambientais, como se poderia supor; mas, a fome que vai brotar de tais conjunturas.

Pois é, ainda ontem, 11 de janeiro, fomos informados de que o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), indicador responsável por nortear o país em relação à inflação, encerrou 2021 em 10,06%, ultrapassando a meta estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) que era de 5,25%.  E como todos já sabem, seja pelos veículos de comunicação e informação ou pela vivência do cotidiano, dentre os grandes vilões dessa história estava justamente os alimentos.

Enquanto nos vangloriamos da satisfação inglória da herança colonial como grandes exportadores de commodities agrícolas – grãos (soja, milho, trigo), proteínas (carnes, leite e derivados), softs (açúcar, cacau, café, suco de laranja e algodão) -, basta uma ligeira variação na cotação do dólar, para que os preços alcancem as alturas nas prateleiras dos mercados e supermercados brasileiros. Exportar é a palavra de ordem por aqui, não importando o retorno avassalador da pobreza e extrema pobreza entre a população.

O que significa gente disputando osso de boi e pés de galinha em açougue, comendo arroz e feijão de terceira, revirando o lixo nos centros urbanos, exibindo a mais completa visão da insegurança alimentar. Entretanto, é preciso destacar que esses representam uma fatia considerável da população atingida pela fome, a partir da perspectiva da impossibilidade de compra, de aquisição dos alimentos. O que os coloca nessa posição é o fato da perda do poder aquisitivo e/ou da própria situação de desemprego, a qual já atinge 13,5 milhões de cidadãos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Porém, quando se olha o panorama que se desenha no horizonte brasileiro, em relação aos iminentes riscos naturais que podem afetar a produção de alimentos, a fome pode ganhar dimensões ainda maiores. Ter ou não o dinheiro para comprar não será exatamente o fiel da balança. A grande questão será a disponibilidade dos produtos para atender as demandas da segurança alimentar de toda a população.

Não estamos falando apenas em termos das commodities já citadas; mas, de frutas, verduras, legumes, ovos, que podem ter a sua produção ameaçada pelos extremos do clima, ou seja, chuvas torrenciais ou escassez hídrica, apesar da vastidão do território nacional. Mais de 500 anos depois da carta de Pero Vaz de Caminha a Dom Manuel, rei de Portugal, na qual se encontra a citação “em se plantando tudo dá”, como referência às terras brasileiras, a mesma não se aplica sem que haja as condições ambientais necessárias. E o Brasil mudou. Mudou muito. Mudou para pior, nesse sentido.   

A apreensão, portanto, a esse respeito já é real. O desabastecimento de muitos alimentos é dado como certo, tendo em vista as perdas computadas nas lavouras, sejam elas de pequeno, médio ou grande porte, até o momento. Mas, o que de algum modo for produzido, então, tende a alcançar os preços resultantes da chamada “lei da oferta e da procura”, inviabilizando a sua aquisição por grande parte da população. As Centrais de Abastecimento (CEASAs), as quais promovem o desenvolvimento, regulação, dinamização e organização do comércio de produtos de hortifruticultura, do atacado para os centros de varejo de cada região do país, já sentem os efeitos desse processo nas últimas semanas.

Ainda que se saiba dos esforços empenhados e concentrados na recuperação dessas áreas de produção de alimentos, esse é um desafio incompatível a pressa que rege a fome. Aliás, se mostra imperioso avaliar se muitas delas devem permanecer de fato destinadas a esse fim, dada a potencialidade de alagamento ou de seca apresentados. Afinal de contas, os eventos extremos não são mais uma perspectiva, eles são uma realidade concreta em todo o mundo. O que estamos vivenciando nessa interface da primavera e verão é justamente a intensificação dessas transformações. De modo que áreas aparentemente viáveis podem, a partir de agora, não serem mais.

Depois, terão que equacionar os aspectos financeiros, os investimentos, os financiamentos, toda a burocracia envolvida na atividade; posto que, insumos, sementes, defensivos, na sua grande maioria são precificados em dólar e, por isso, têm um custo por si só elevado. Aí sim, chegará o tempo de colocar a mão na terra, de plantar, de esperar germinar, e de colher para vender ao ávido mercado consumidor. Então, não é assim, da noite para o dia, como a vontade e o desejo de muita gente por aí.

Sei que, no frigir dos ovos, todas essas considerações nos abrem a possibilidade de ir mais além na reflexão. Repensar as relações de consumo, o desperdício de alimentos, os impactos da insegurança alimentar na sociedade, a interface da alimentação com a saúde pública, ... Afinal, tratam-se de questões que começam a emergir dentro desse caos e a gerar desconforto e discussão a respeito. E isso acontece porque temos que falar sobre isso, romper os paradigmas, desconstruir as ideias ultrapassadas, ou seja, olhar para a fome com fome. Fome de saber. Fome de entender. Fome de transformar. Fome de produzir. Fome de compartilhar. Fome de saciar o corpo e a alma. Mas, sobretudo, fome de exercer a nossa cidadania.