“Em se plantando tudo dá”. Será mesmo o bastante?!
Por
Alessandra Leles Rocha
Pontes destruídas. Estradas
bloqueadas. Vastas extensões de terra submersas pelas águas furiosas dos rios
transbordantes. Desabrigados. Desalentados. Mortos. Enfim, o cenário caótico de
diversas cidades brasileiras nesse fim/início de ano faz pensar profundamente
sobre a verdade da realidade. Tratam-se de situações que não se possibilita
maquiar para dar aspecto melhor. São exatamente o que são. Destruição em estado
bruto, aguardando o angustiante momento do recomeço, da reconstrução.
Mas, se fosse só (tudo) isso, já
seria muito. Acontece que o fato se decompõe em camadas. Quando a gente se dá conta, esse não é o
problema de fulano ou beltrano, desse ou daquele lugar, é um problema nacional.
Do mesmo modo, quando se aborda a seca, a escassez hídrica, a ausência de
chuvas, em outros cantos do território. E sabe por quê? Porque o denominador
comum dessa história não são as intempéries ambientais, como se poderia supor;
mas, a fome que vai brotar de tais conjunturas.
Pois é, ainda ontem, 11 de
janeiro, fomos informados de que o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA),
indicador responsável por nortear o país em relação à inflação, encerrou 2021
em 10,06%, ultrapassando a meta estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN)
que era de 5,25%. E como todos já sabem,
seja pelos veículos de comunicação e informação ou pela vivência do cotidiano, dentre
os grandes vilões dessa história estava justamente os alimentos.
Enquanto nos vangloriamos da
satisfação inglória da herança colonial como grandes exportadores de commodities agrícolas – grãos (soja,
milho, trigo), proteínas (carnes, leite e derivados), softs (açúcar, cacau, café, suco de laranja e algodão) -, basta uma
ligeira variação na cotação do dólar, para que os preços alcancem as alturas
nas prateleiras dos mercados e supermercados brasileiros. Exportar é a palavra
de ordem por aqui, não importando o retorno avassalador da pobreza e extrema
pobreza entre a população.
O que significa gente disputando
osso de boi e pés de galinha em açougue, comendo arroz e feijão de terceira,
revirando o lixo nos centros urbanos, exibindo a mais completa visão da
insegurança alimentar. Entretanto, é preciso destacar que esses representam uma
fatia considerável da população atingida pela fome, a partir da perspectiva da
impossibilidade de compra, de aquisição dos alimentos. O que os coloca nessa
posição é o fato da perda do poder aquisitivo e/ou da própria situação de desemprego,
a qual já atinge 13,5 milhões de cidadãos, segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE).
Porém, quando se olha o panorama
que se desenha no horizonte brasileiro, em relação aos iminentes riscos
naturais que podem afetar a produção de alimentos, a fome pode ganhar dimensões
ainda maiores. Ter ou não o dinheiro para comprar não será exatamente o fiel da
balança. A grande questão será a disponibilidade dos produtos para atender as
demandas da segurança alimentar de toda a população.
Não estamos falando apenas em
termos das commodities já citadas; mas, de frutas, verduras, legumes, ovos, que
podem ter a sua produção ameaçada pelos extremos do clima, ou seja, chuvas
torrenciais ou escassez hídrica, apesar da vastidão do território nacional. Mais
de 500 anos depois da carta de Pero Vaz de Caminha a Dom Manuel, rei de
Portugal, na qual se encontra a citação “em
se plantando tudo dá”, como referência às terras brasileiras, a mesma não
se aplica sem que haja as condições ambientais necessárias. E o Brasil mudou. Mudou
muito. Mudou para pior, nesse sentido.
A apreensão, portanto, a esse
respeito já é real. O desabastecimento de muitos alimentos é dado como certo,
tendo em vista as perdas computadas nas lavouras, sejam elas de pequeno, médio
ou grande porte, até o momento. Mas, o que de algum modo for produzido, então,
tende a alcançar os preços resultantes da chamada “lei da oferta e da procura”, inviabilizando a sua aquisição por
grande parte da população. As Centrais de Abastecimento (CEASAs), as quais
promovem o desenvolvimento, regulação, dinamização e organização do comércio de
produtos de hortifruticultura, do atacado para os centros de varejo de cada
região do país, já sentem os efeitos desse processo nas últimas semanas.
Ainda que se saiba dos esforços empenhados
e concentrados na recuperação dessas áreas de produção de alimentos, esse é um
desafio incompatível a pressa que rege a fome. Aliás, se mostra imperioso avaliar
se muitas delas devem permanecer de fato destinadas a esse fim, dada a potencialidade
de alagamento ou de seca apresentados. Afinal de contas, os eventos extremos
não são mais uma perspectiva, eles são uma realidade concreta em todo o mundo. O
que estamos vivenciando nessa interface da primavera e verão é justamente a
intensificação dessas transformações. De modo que áreas aparentemente viáveis
podem, a partir de agora, não serem mais.
Depois, terão que equacionar os
aspectos financeiros, os investimentos, os financiamentos, toda a burocracia
envolvida na atividade; posto que, insumos, sementes, defensivos, na sua grande
maioria são precificados em dólar e, por isso, têm um custo por si só elevado. Aí
sim, chegará o tempo de colocar a mão na terra, de plantar, de esperar
germinar, e de colher para vender ao ávido mercado consumidor. Então, não é assim,
da noite para o dia, como a vontade e o desejo de muita gente por aí.
Sei que, no frigir dos ovos,
todas essas considerações nos abrem a possibilidade de ir mais além na reflexão.
Repensar as relações de consumo, o desperdício de alimentos, os impactos da
insegurança alimentar na sociedade, a interface da alimentação com a saúde pública,
... Afinal, tratam-se de questões que começam a emergir dentro desse caos e a
gerar desconforto e discussão a respeito. E isso acontece porque temos que falar
sobre isso, romper os paradigmas, desconstruir as ideias ultrapassadas, ou
seja, olhar para a fome com fome. Fome de saber. Fome de entender. Fome de
transformar. Fome de produzir. Fome de compartilhar. Fome de saciar o corpo e a
alma. Mas, sobretudo, fome de exercer a nossa cidadania.